(…) Da minha língua vê-se o mar/ (…)/ Por isso a voz do mar/ Foi a da nossa inquietação. [Virgílio Ferreira (1916-1996), , poeta português]
Cada vez mais, em Portugal e no Brasil, levantam-se vozes dissidentes contra as novas normas que mais separam do que aproximam os povos da lusofonia.
Acreditamos que esse sentimento contrário ocorra, pois o espírito do Acordo não representa a universalidade da língua portuguesa, preconizada pelo padre António Vieira e ratificada por Fernando Pessoa.
Nós, os escritores do Brasil, e demais operários da língua portuguesa, solidarizamo-nos com os colegas lusitanos na contestação ao Acordo Ortográfico, elaborado sem ampla discussão e sem a participação dos que sobrevivem da língua portuguesa.
Hoje, nos cinco continentes, os luso falantes sentem-se desconfortáveis com as inúmeras modificações léxicas determinadas por um grupo tão reduzido e tão pouco representativo de pessoas.
Convocamos todos para uma reflexão sobre este assunto de fundamental importância. (Angela Dutra de Menezes e Clóvis Bulcão)
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Este é o texto que Clóvis Bulcão e eu, escritores, estamos espalhando através da internet. Queremos saber quem não aceita que o nosso instrumento de trabalho, a língua portuguesa, seja autoritariamente modificada, sem nenhuma preocupação com os que dela sobrevivem. Se você faz parte deste grupo, una-se a nós. Se não tem opinião formada, leia a história do Acordo. Talvez você se torne mais um a protestar.
A idéia da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) – Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe e Timor Leste (na época ainda ausente) – surgiu num encontro de chefes de Estado e Governo destes países, promovido pelo então presidente José Sarney, em São Luis (MA), em novembro de 1989. Havia tempo, José Aparecido de Oliveira, então ministro da Cultura de Sarney, sonhava em unir os países lusófonos num bloco lingüístico e econômico ‘capaz de influenciar o mundo globalizado’. Realmente, sonhar é grátis. Países não produtores de tecnologia de ponta, sem economia pujante, falando uma língua desconhecida pelo resto dos civilizados, considerarem-se capazes de ‘influenciar o mundo globalizado’. Francamente…
Após o pontapé inicial começaram as reuniões, encontros e cimeiras para a criação da Comunidade, o que acabou acontecendo em julho de 1996. A CPLP trouxe, de imediato, três conseqüências (com trema, por favor). Uma agradável. As outras duas, nem tanto.
Destinos globais
A agradável foi a facilidade com que nós, os membros da lusofonia, começamos a ter para, nos aeroportos lusos e brasileiros – infelizmente, não conheço os outros países do Clube –, escaparmos daquelas filas imensas que se formam após a chegada simultânea de dois vôos. Afinal, há uma entrada especial para nós, da CPLP. Confesso, sinto orgulho. É a única hora em que posso olhar com superioridade para os norte-americanos exaustos, insones e irritados, esperando o tradicional carimbinho no passaporte.
As desagradáveis começaram pela escolha do primeiro secretário-executivo do bloco. O nomeado foi Marcolino Moco, angolano. Uma das primeiras determinações da nascente CPLP estabelecia a ordem alfabética no rodízio de ocupantes da secretaria. Angola começa com A e o Brasil perdeu aos 45 minutos do segundo tempo. Só após a morte de José Aparecido, em 2007, alguns membros da organização reconheceram que, talvez, o destino da CPLP tivesse sido outro se o seu idealizador continuasse tocando o projeto. Talvez. A História não é escrita no condicional.
A outra encrenca, de proporções astronômicas, armou-se vagarosamente. Entre 1988, ano em que foi redigido o Anteprojeto das Bases da Ortografia Unificada da Língua Portuguesa e 2008, quando vários Congressos Nacionais votaram as mudanças, ocorreram diversas reuniões. Lingüistas (trema, please; aliás, a língua inglesa nunca precisou de nenhuma unificação, mas é a dona do mundo), gramáticos, imortais (eu amo o Mausoléu dos Imortais no cemitério São João Batista, no Rio; tanto nonsense só no Brasil), escritores e intelectuais discutiram à exaustão a nossa-pátria-nossa-língua, que deveria se submeter a uma só grafia. Convenhamos, ninguém modifica os destinos globais sem que os factos ou fatos sejam devidamente destrinchados.
Goela abaixo
Durante anos discutiu-se a propalada (e desejada?) unificação ortográfica. Justiça seja feita: hoje, os portugueses lideram, com folga, o repúdio ao Acordo. Pertence-lhes o mérito de terem gritado primeiro. Mas cabe a eles – no Encontro de 1990, dos 23 delegados que sapecaram o jamegão abençoando as mudanças, dez eram portugueses –, grande parte da responsabilidade do cataclismo que abalou o nosso idioma.
Resumindo: acerta daqui, acerta de lá – um país decidiu que colocaria as mudanças em prática no ano X o outro, no ano Y, tirou-se um C, sumiram com trema – e explodiu a bomba: 1,6% do Português de Portugal fora modificado; 0,5% do brasileiro, também. Numericamente, não é muita coisa. Apenas o suficiente para armar uma encrenca considerável. Principalmente quando se modifica aquilo que os usuários da língua consideram realmente importante. Caso das consoantes mudas. É a velha história: mudar um idioma é questionar uma nacionalidade. Situação difícil de ser engolida.
Alheias a tudo, as Academias Brasileira de Letras e de Ciências de Lisboa consideraram pronto o Acordo de Unificação da Língua Portuguesa em 2004. Data discutível, já que outras, antes, haviam sido marcadas. Mas isso, agora, não vem ao caso. Em 2008, a Assembléia portuguesa aprovou o projeto em votação consagradora e o primeiro-ministro Cavaco Silva promulgou-o. No Brasil repetiu-se a cena, o presidente Lula e o Congresso Nacional acharam tudo ótimo. Cabo Verde, São Tomé e Príncipe seguiram o modelito luso-brasileiro. Mas Angola, Guiné-Bissau, Moçambique e Timor Leste garantiram que iriam aprovar, não aprovaram e o caldo entornou.
Intelectuais, gramáticos e lingüistas portugueses reagiram imediatamente, redigindo um manifesto contra a adoção do Acordo, disponibilizado na internet em maio de 2008. Apenas um ano depois, este manifesto contava com quase 200 mil assinaturas, soma considerável para um país de 10 milhões de habitantes. O texto virtual, entre outras coisas, afirma que ‘(…) o Acordo não tem condições para servir de base a uma proposta normativa, contendo imprecisões, erros e ambigüidades’.
O imortal Ivanildo Bechara, padrinho brasileira da barbárie, acusou o golpe, respondendo ‘(…) só num ponto concordamos, em parte, com os termos do Manifesto-Petição: quando declara que o Acordo não tem condições de servir de base a uma proposta normativa, contendo imprecisões, erros e ambigüidades. (…) professores de ambas as margens do Atlântico e especialistas em línguas africanas já apontaram falhas e sugestões. Mas isso tem ocorrido com todas as propostas de reformas e elas são aceitas e adotadas, mesmo assim, com promessas de melhorias no futuro (…)’ [grifo meu].
Os portugueses replicaram, classificando de ‘omisso’ o documento de Bechara por ‘não apresentar propostas concretas e prazos para a efetivação das correções necessárias’. Eu que não sou lingüista, doutora ou imortal pondero: se até o Bechara, que nos empurra goela abaixo este Acordo espúrio, o considera falho, por que motivo o estamos adotando?
Jogo do bicho
É inacreditável. Somos nós, os quase 200 milhões de falantes, os únicos lusófonos que, passivamente, aderimos ao português modificado. Apesar da má-vontade da população em geral. Portugal ignora solenemente – no que faz muito bem – os estupros cometidos em nosso idioma comum.
A nova língua portuguesa – vaidade de meia dúzia de intelectuais, tolice de outra meia dúzia, capaz de acreditar que as mudanças tornarão maior a influência brasileira nos países africanos – é uma ofensa. Apenas para lembrar aos inocentes do Leblon: influenciar cabe à cultura, principalmente a popular. Uma Regina Casé passeando em Angola, gravando o programa Um pé de quê, corresponde a mil Acordos Ortográficos.
Nunca os povos lusófonos se desentenderam tanto. Nunca existiu tanta má vontade entre um e outro lado. Já passou a hora de as Academias brasileira e portuguesa reconhecerem o erro cometido – afinal, quem não erra? – e reverter a situação que mais afasta do que aproxima dois povos secularmente unidos. Não há absolutamente nenhuma justificativa para as mudanças inconseqüentes perpetradas contra a língua portuguesa.
Devemos ser eternamente gratos aos países que se omitiram e não assinaram a ratificação do Acordo. Se todos não assinaram, não existe um todo. Portanto, o Acordo não tem validade. Como, sabiamente, ensina o jogo do bicho, vale o escrito.
E que se revoguem as disposições em contrário.
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Escritora