Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Uma obra prima do desespero silencioso

osrestosdodia_livroAlguns dos meus amigos e familiares podem revirar os olhos se virem isto – eles já ouviram inúmeras vezes a minha falação sobre Os restos do dia [em janeiro de 2015, com bastante atraso, descobri que a Companhia das Letras havia publicado uma versão do livro em português, intitulada Os resíduos do dia (2003) . Achei o título desastroso e, na ocasião, escrevi o seguinte comentário: “Traduzir The remains of the day como Vestígios do dia, como aconteceu com o filme (1993), já foi uma escolha ruim, mas a ambiguidade do termo ‘vestígio’ (indício, pista) parece ter emprestado algum charme, o que terminou encobrindo a barbeiragem. A opção por Os resíduos do dia, no entanto, é simplesmente ruim de doer (para não dizer patética), não só de um ponto de vista semântico ou estético, mas também porque induz o leitor a mal-entendidos.

Em português, penso eu, uma opção bem mais apropriada seria Os restos do dia. Não li o livro, mas no filme (uma obra-prima e, ouso dizer, um dos maiores filmes da história do cinema [aqui: http://www.imdb.com/title/tt0107943/]) a expressão fixada no título é usada pelo mordomo Stevens (Anthony Hopkins) em alusão ao seu futuro (os anos pela frente com o novo senhorio etc.) não em alusão ao passado, embora a maior parte do filme seja ocupada por recordações (flashbacks)”. Enquanto preparava a tradução deste artigo, descobri que a editora relançou a versão em português, agora sob o título Os vestígios do dia (2016). (Cabe notar que o título do filme lançado no país não tem o “Os”.)]. Alguns já receberam um exemplar imposto como presente.

Ao longo dos anos, desde que o li, tornei-me um pregador de Os restos do dia. A culpa não é minha. A sutil obra-prima de Kazuo Ishiguro sobre as angústias íntimas de um mordomo envelhecido não é de todo desconhecida – afinal, ganhou o Prêmio Booker  de 1989 –, mas às vezes a gente encontra uma obra literária tão bem escrita, tão comovente e tão perceptível sobre as vidas que muitos de nós estamos a levar, que não se pode deixar de elogiá-la a qualquer um que não seja perspicaz o suficiente para parecer ocupado.

A falta de comedimento talvez seja a melhor resposta ao romance de Ishiguro, a história de um homem tão oprimido pela decência a ponto de deixar o amor de sua vida escorregar por entre os dedos. O sr. Stevens é o chefe dos empregados de uma imponente mansão inglesa; quando o romance começa, no verão de 1956, ele está pronto para empreender uma viagem de carro com o propósito de visitar a srta. Kenton, uma governanta que saiu 20 anos antes para se casar. O mordomo diz que gostaria de lhe perguntar se ela pensaria em retornar ao trabalho: “Srta. Kenton, com seu grande apreço por esta casa e seu exemplar profissionalismo, era o elemento que me faltava para completar um plano de empregados plenamente satisfatório para Darlington Hall.” Mas Stevens não engana ninguém, especialmente quando deixa escapar que uma carta (“a sua primeira em sete anos, descontando os cartões de Natal”) contém pistas de que o casamento dela está desmoronando.

Narradores inconfiáveis – aquelas figuras misteriosas que o leitor deve tentar destrinchar – são comuns demais na ficção. Ishiguro, em vez disso, prefere nos oferecer narradores incônscios: falantes que permanecem aprisionados em fantasias de auto-preservação, misteriosas até para eles mesmos. Pouco a pouco, a gente aprende a procurar as reais emoções circulando debaixo da superfície lustrosa da prosa. Stevens recorda com prazer o seu antigo empregador, lorde Darlington, um aristocrata que se aliou aos nazistas e eventualmente morreu em desgraça. Ele esquadrinha as lembranças de seu pai – ele próprio um mordomo, que se mantinha distante a ponto de magoar – e prega sobre a “dignidade”, um ideal fictício que tem a ver “com a capacidade do mordomo de não abandonar o ser profissional que o habita”.

Cada anotação no diário se torna um afetado exercício de evasão e projeção. Quando Stevens chega a um assunto emotivo – tal como se a senhorita Kenton foi embora por causa de sua recusa em admitir seus sentimentos por ela –, ele dá uma guinada, tagarelando em defesa própria, choramingando por algumas páginas antes de se sentir capaz de prosseguir. “Apesar de tudo”, escreve ele de modo revelador, “não vejo motivo para o seu retorno a Darlington Hall e acompanhar seus anos de trabalho lá não ofereceria um real consolo a uma vida que se tornou tão dominada por uma sensação de perda.”

O que é e o que poderia ter sido

Temos a imagem de um homem tentando desesperadamente abafar suas emoções – e quão completa é a imagem. Os restos do dia faz a coisa mais maravilhosa que um trabalho literário pode fazer: faz a gente sentir como se tivéssemos uma vida humana em nossas mãos. Quando chegamos ao fim, parece que realmente perdemos um amigo – um amigo ridiculamente pomposo, sério e antiquado [no original: “[…] a laughably pompous, part[y]-hat-refusing, stick-in-the-mud friend […]”], mas, ainda assim, um bom amigo. Temos vontade de abraçá-lo, a não ser que ele fique indignado.

Os restos do dia é um livro sobre uma vida frustrada. Sobre como o condicionamento de classe pode transformar você em seu pior inimigo, fazendo-o cúmplice de sua própria subserviência. É um livro bem inglês – não imagino que leitores de nações mais gregárias tenham muita paciência com um protagonista que consome quatro décadas e não consegue declarar seus sentimentos. “À espera, em silente desespero, é o jeito inglês” [no original: “Hanging on in quiet desperation is the English way”], como o Pink Floyd cantou. É um livro para todos aqueles que acham que já se contiveram quando algo que realmente importava estava ao seu alcance.

Acima de tudo, porém, é um livro sobre o amor. Stevens é forçado a abandonar suas ilusões sobre lorde Darlington, seu orgulho filial, sua estimada “dignidade”, até que tudo o que resta é a Srta. Kenton e o que poderia ter sido. A história atinge o seu discreto clímax na calma de uma pequena lanchonete na Cornualha. Não vou estragar o final; apenas dizer que, nessa como em outras passagens, o que não é dito faz toda a diferença.

Ouvi certa vez que, para fazer o leitor chorar, o escritor deveria tentar manter os personagens com os olhos secos. Há algumas lágrimas nesse romance – todavia, talvez não o suficiente, pois a história do inabalável e irremediavelmente equivocado Stevens sempre me emociona. Se ainda não leu Os restos do dia, espero que me dê licença para deixar de lado minha dignidade profissional, implorando a você que consiga logo um exemplar. E se você tiver lido e gostado – o que quer que você faça –, não guarde os seus sentimentos só para si.

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Peter Beech é subeditor da seção de Cultura do Guardian