O jornalismo brasileiro sempre teve fascínio pelo que se publica a respeito do país no chamado “primeiro mundo”. Qualquer menção ao Brasil ou a um de seus cidadãos historicamente sempre foi notícia aqui.
No entanto, nos meses que antecederam à Olimpíada do Rio, apesar de esse ter sido um dos períodos em que mais o Brasil apareceu nos jornais, revistas e emissoras de TV dos Estados Unidos e da Europa, a repercussão local desse raro destaque foi mínima.
No dia 9 de junho, por exemplo, Hillary Clinton, já sagrada candidata à Presidência dos Estados Unidos pelo Partido Democrata, ocupou-se em entrevista dada à agência Associated Press (que a maioria dos veículos brasileiros assina) a mostrar preocupação quanto à realização dos Jogos por causa da zika.
Chamou a situação de “profundamente aflitiva”, disse que se tratava de “uma ameaça realmente séria de saúde pública” e que era preciso decidir logo se as pessoas em geral ou, pelo menos, algumas delas deveriam ir ao Rio.
Qualquer correspondente brasileiro nos Estados Unidos sabe que, se um candidato presidencial naquele país faz declarações sobre o Brasil, isso é seguramente algo importante para o seu veículo. Ainda mais se esse alguém integra o clã dos Clintons, que por si só já são sempre alvo de interesse generalizado.
Mas estranhamente as fortes declarações de Hillary não encontraram repercussão na mídia brasileira, apesar de ter sido acessível a toda ela por meio da AP.
Os maiores diários brasileiros têm os direitos de publicação dos artigos excelentes de diversos prêmios Nobel e renomados intelectuais do Project Syndicate, e os editam regularmente.
No entanto, nenhum deles deu o que o Syndicate distribuiu em 6 de junho, assinado por Peter Singer, professor de bioética da Princeton University, em que ele enfaticamente recomendava que a Olimpíada fosse ou adiada ou transferida por causa da ameaça da zika.
Singer liderou a publicação de um manifesto que teve o endosso de outros 223 cientistas que fizeram o mesmo pedido à Organização Mundial da Saúde, e esse fato foi um dos poucos com referências negativas aos Jogos do Rio que encontrou algum abrigo na imprensa brasileira, mesmo assim discreto.
O Globo e a Folha de S.Paulo o destacaram em chamada de capa (mas abaixo da dobra da página) e Veja deu reportagem sem menção na capa. A Folha também publicou artigo a respeito em sua página de opinião.
Em geral, no entanto, deu-se mais destaque à defesa pelas autoridades olímpicas e do governo à realização dos jogos, porque, segundo eles, o risco era pequeno, do que à denúncia dos cientistas internacionais.
A zika foi o principal assunto referente aos Jogos do Rio na imprensa mundial nos meses que os antecederam, mas não o único. Os demais tampouco foram motivo de atenção da mídia brasileira.
A poluição das águas em que se realizariam provas mereceu inúmeras reportagens e artigos, inclusive da nadadora americana Lynne Cox, no New York Times de 6 de maio, no qual ela recomendava a todos os colegas que se recusassem a competir em tais condições por extremo risco à saúde.
Também foram temas constantes nos veículos dos Estados Unidos e da Europa: a onda de crime no Rio este ano, o fracasso de unidades de pacificação em favelas nesse período, as suspeitas de corrupção nas obras do Complexo Esportivo Deodoro, o atraso em obras do legado urbano, a coincidência dos Jogos com o impeachment de Dilma Rousseff, a preocupação com falta de segurança adequada para eventual ataque terrorista, entre outros assuntos. Essa repercussão tampouco interessou à mídia local.
Na doce embriaguez patriótica dos jogos
Em conformidade com sua triste tradição de muito pouco se autocriticar ou discutir publicamente, o jornalismo brasileiro não deu atenção ao peculiar comportamento de deixar passar batida a má repercussão mundial dos Jogos.
Raríssima exceção foi a economista Monica de Bolle, que, em O Estado de S. Paulo, mencionou em 8 de junho “o silêncio que impera nos meios de comunicação nacional sobre os Jogos Olímpicos” e creditou-o ao fato de eles estarem “afogados em meio aos escândalos e à crise econômica”.
Talvez a urgência prioritária dos temas de política e economia tenha sido um fator para o ocultamento da repercussão internacional dos Jogos. Mas é improvável que só isso explique o fenômeno.
Em 2009, no auge da miragem de êxtase do Brasil potência, o Rio foi escolhido para sediar os Jogos, e a imprensa também entrou na onda de embriaguez nacional de ufanismo.
Os Jogos são grande negócio publicitário e jornalístico. Consciente ou não, a atitude de protegê-los de crítica prevaleceu nas redações.
Falta por causa da zika não interessa
Ótimas histórias de interesse humano foram deixadas de lado no Brasil devido à omissão em atentar para a pauta negativa internacional.
O campeão olímpico britânico de salto em distância Greg Rutherford congelou seu esperma para ir ao Rio sem riscos.
A apresentadora do Today Show da TV americana Savannah Guthrie, grávida, desistiu do sonho profissional de cobrir os Jogos.
Ao reportar a ausência de estrelas na Olimpíada Rio 2016 em 9 de junho, a Folha listou os que não poderiam ir por problemas físicos, legais (doping) ou contratuais (seus times não os liberaram). Mas não incluiu nenhum dos que abriram mão dos Jogos por receio de contrair doenças.
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Carlos Eduardo Lins da Silva é livre-docente, doutor e mestre em comunicação