Aproximam as eleições de 2016. Ameaçados pelo lobby e infinito aporte financeiro das empresas estrangeiras que querem desapropriar o sistema de transporte individual em várias cidades, os taxistas buscam unir votos em bloco numa derradeira tentativa de preservar a profissão regulamentada pela presidenta Dilma em 2011, através da lei 12.468/11. De repente, descobriram que fazem parte de um grupo de trabalhadores sem apoio dos partidos e nomes da esquerda, que parece não botar fé na capacidade de coordenação política da categoria. Pasmem, os que anunciam a defesa irredutível a favor classe nas duas grandes capitais (Rio e SP) são candidatos da direita. Um deles lidera as pesquisas. Confrontada com o tema, a esquerda exibe sintomas da síndrome do gato angorá. As apostas começaram.
Durante de 50 anos, o táxi foi a ocupação exercida por milhares de cidadãos que escolheram o trabalho autônomo para construir a própria vida. Formaram família, criaram os filhos e mesmo depois de aposentados permaneceram ao volante, a maioria por amor ao ofício. No Rio, são mais de 50 mil motoristas que se revezam na frota de cerca de 33 mil táxis que rodam diariamente pelas ruas da cidade. Operários que conduzem máquinas e transportam pessoas. Alguns mal-humorados, outros conversadores, há os religiosos, os politizados, mas prevalece em todos eles a paixão e o vício pelo asfalto. Num trânsito desgastante, expostos a todos os perigos, eles superam jornadas de 12 horas para alcançarem uma féria digna.
Os taxistas despertam lendas que se proliferam pela ignorância. Dizem que são organizados, com sindicatos fortes, mas a realidade é que são fragmentados e com sindicatos de fachada. Seus patrões, os passageiros, nutrem ódios secretos e explícitos pela categoria. Por mais que a maioria se esforce em prestar um bom serviço, é pela minoria que são condenados. Não só no Brasil, mas quase no mundo inteiro, os taxistas representam o mais genuíno exemplo de preconceito de classe, descritos como máfia, grosseiros, reacionários, crentes, pobres e fracassados. Numa correlação poética, poderíamos dizer que eles embarcam indivíduos e desembarcam rancores.
Recentemente, multinacionais estrangeiras baseadas na tecnologia dos aplicativos, descobriram que os táxis são um filão que rende cifras bilionárias. Investiram na exploração do serviço. Não, não investiram para exercitar a concorrência, decidiram formar um monopólio. A estratégia para tomar o mercado encontra sucesso fácil em países como o Brasil, onde a grande imprensa também segue o formato de um monopólio privado e é facilmente cooptada por patrocinadores poderosos. Incentivando matérias na mídia, os aplicativos de “carona remunerada” se lançam numa campanha feroz contra os taxistas autônomos. Um grande jornal carioca passou meses mobilizando todos os seus colunistas para publicar textos semanais enxovalhando o serviço e os motoristas dos amarelinhos.
Usando editoriais e figuras famosas, como Jânio de Freitas, Gregório Duvivier e Nelson Motta, a imprensa não deu trégua. De uma hora para outra, todos entendiam sobre a complexa burocracia municipal que concede as licenças e sobre árdua tarefa de dirigir para sobreviver. Num piscar de olhos, nasceu um messias, o salvador, uma corporação estrangeira canonizada pela opinião pública: o Uber.
Os “barões dos taxis”
Um dos argumentos mais usados para quebrar os taxistas e abrir espaço ao canibalismo do Uber remetia aos “barões dos táxis”, empresas que representam cerca de 1670 autonomias diante de uma frota de 33 mil viaturas (segundo informação do jornal Extra, na edição de 15/09/2015). Ou seja, pouco mais de 5% das licenças é que dimensionam os “barões” dentro de uma categoria formada maciçamente por profissionais autônomos. Essa famigerada máfia cobra diária, mas fornece o carro, paga os seguros, recolhe impostos e oferece os fins de semana para o ganho livre do motorista. Já o taxista autônomo precisa assumir encargos, vistorias, manter os documentos em dia, além de declarar imposto de renda, se quiser renovar sua licença anualmente. Testemunhamos um fenômeno surpreendente e inexplicável, quando o termo “máfia” é usado contra quem segue e respeita regras.
Em regiões com mentalidade menos colonizada, já se questiona com rigor a invasão de aplicativos que alocam a mídia, não respeitam nenhuma legislação, ignoram o poder público e se utilizam do judiciário para impor a reinterpretação das leis vigentes em benefício próprio. O derrame de carros particulares prestando o serviço de transporte individual causa piora na qualidade de vida, na poluição e na precarização do serviço. Nada se reverte em benefício sustentável à população. A tarifa mais barata é uma dívida que será cobrada com juros extorsivos e a curto prazo. Apesar dos danos evidentes à ordem urbana, apesar da óbvia intenção de formar um monopólio privado daquilo que antes pertencia a trabalhadores independentes, o Uber propagou uma cartilha eficaz para doutrinar mentes e ser repetida pelas bocas de menor senso crítico. Tudo se resume à livre escolha, à livre iniciativa. É tragicômico que uma organização monopolista pregue tais valores. Uma calamidade que muitos acreditem nisso.
Considerada agressiva e predatória, a estratégia do Uber se apoia em poucos elementos. Primeiro usam a mídia para desqualificar os táxis; em paralelo divulgam uma primeira proposta de carros de luxo que serve como Cavalo de Tróia; passam a uma segunda fase, em que se aproveitam da indignação dos taxistas para destacar o ódio e as reações violentas da classe como fatores que confirmam a antipatia da população.
Com o sistema de táxi fragilizado e seus profissionais deprimidos pelo massacre moral, esquecem os carros de luxo e implantam o Uber-X, atraindo motoristas inexperientes que se submetem a tarifas menores usando veículos populares, mais velhos que a frota de táxi, para dominar o cenário. Por último, pressionam políticos pela desregulamentação do serviço, o que legitima o lucro sem a necessidade assumir o ônus tributário da atividade. Não oferecem nada aos seus parceiros, mas subtraem 25% do faturamento bruto de cada motorista, rejeitando qualquer vínculo trabalhista. A cobrança é por dia trabalhado, não há rendimento que fique livre da taxa imposta para trabalhar pelo aplicativo.
O Uber é muito mais ganancioso do que as 15 empresas de táxi que atuam no Rio, desrespeitam toda a legislação municipal que regula a modalidade de transporte individual público, mas são os mocinhos nas manchetes e nas reportagens da TV. Os vilões do século 21 são aqueles que se submetem ao poder público. Com a ajuda da grande imprensa, ceifaram cérebros e substituíram os barões por um faraó. O capital não quer mais limites.
O Jânio de Freitas escreveu que os taxistas mereciam uma boa lição para castigar a prepotência da classe. O Duvivier conta que taxista mija em poste. Graças ao Jânio de Freitas e ao Gregório Duvivier, ambos da Folha de São Paulo, a esquerda caviar (que custa caro) decidiu mudar para um formato mais econômico e que aceita cartão de crédito: nasce a esquerda Uber.
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Alexandre Coslei é jornalista e escritor