Thursday, 19 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Ancinav e o retorno ao debate

Dentre o amplo espectro de angulações críticas a respeito do anteprojeto encaminhado pelo Ministério da Cultura, propondo a criação da Ancinav, a despeito do muito que contra ou a favor tenha sido formulado, aspectos outros merecem registro, afora questões já pontuadas em artigos anteriores [remissões abaixo]. Algumas das questões a envolverem a proposição da Ancinav, ainda fora das análises figurantes em dezenas de artigos, podem ser direcionadas para dois pontos: 1) estratégia governamental; 2) redefinição da política cultural.

A estratégia governamental

Qualquer avaliação desapaixonada e, até onde possível, isenta dá conta de que duas possibilidades explicam a atuação do presente governo, desde a posse: 1) não dispunha de nenhum projeto governamental; 2) o projeto de que dispunha não era viável para execução. Apenas servia como alavanca para a vitória nas urnas. A partir daí, o desafio ficou posto. Como governar sem projeto, dando a impressão de estar transformando tudo? E mais: como dar visibilidade a esse jogo das aparências? Aí entra em cena a parceria entre mídia e governo.

Nenhuma alteração na lógica econômica foi promovida. Pelo contrário, todo o empenho esteve direcionado para a radicalização do modelo já encontrado. Quanto aos demais setores, multiplicados em ministérios e com verbas engessadas, coube implementar em todos conjunto de medidas reformistas, mantendo o noticiário com pautas recheadas. Assim vieram os projetos para a previdência, área tributária, planos assistencialistas, regulamentações para profissões (dentro do figurino está o Conselho Federal de Jornalismo), discussão sobre liberação para plantio de transgênicos, além dos inúmeros episódios em âmbito internacional e doméstico, a exemplo do pedido de expulsão do jornalista norte-americano e o novo avião presidencial.

A mídia, sob esse prisma, não tem do que se queixar: desde janeiro de 2003, há farta oferta de pautas para todos os gostos. E assim tem sido. Passadas as eleições, virão outras mais, tais como: as reformas trabalhista, judiciária e política, garantindo previamente mais um ano pautado, além de assegurar, como imagem pública, um governo que ininterruptamente ‘mostra serviço’.

Na estratégia pensada, não podia ficar ausente justamente a área encarregada de dar visibilidade: o setor midiático. Na consecução da lógica aqui delineada, a um só tempo vieram à tona – nitidamente com propósitos radicalmente distintos – o projeto para a formação do Conselho Federal de Jornalismo, repleto de artigos que sabidamente produziriam acaloradas discussões no palco da própria mídia e, na outra ponta, num plano de bastante seriedade e com indiscutível procedimento democrático, o debate de caráter estrutural, voltado para a reconfiguração da cultura como geradora de políticas e de receitas, tópico a ser abordado a seguir.

Redefinição da política cultural

Como já foi salientado, o anteprojeto da Ancinav, este sim, desde a sua formulação original, posto na arena pública da discussão, provocou, diferentemente de governos anteriores, o rumor necessário a uma área que, embora estrategicamente represente para qualquer nação o calçamento de sua identidade, sempre esteve à sombra de outros interesses, figurando na maioria das vezes como mero adorno no conjunto de um governo. Primeiramente, há de se relembrar que a Ancinav está no bojo de uma discussão mais ampla que inclui, no Congresso, a tramitação do ‘Plano Nacional de Cultura’ ao qual já, no artigo anterior [‘A perversão da lógica quantitativa’, remissão abaixo], foi feita alusão.

É óbvio que, na proposição do Ministério da Cultura, há artigos geradores de intensas controvérsias, entre as quais os percentuais fixados para a taxação de recolhimentos de receitas. Ninguém será ingênuo em não perceber que os percentuais firmados atendem a duas estratégias: 1) função apelativa: produzir nos segmentos atingidos a reação necessária para o envolvimento com o tema; 2) manobra de negociação: quem pretende algum ganho não declara a priori quanto aceita. Para tanto, sempre parte de um patamar acima, a fim de chegar ao propósito real. Isto é princípio elementar que, em linguagem corrente, equivale à expressão ‘poder de barganha’.

A grande questão, porém, reside em outras esferas: pela primeira vez, um órgão governamental gera certo desconforto em setores habituados a ditarem modelos, livres de maiores ou menores admoestações. O complexo midiático reinante no país, ao longo de décadas, se torna alvo de injunções externas que sempre estiveram sob controle absoluto de propósitos internos. Esta é a face política da questão.

Que existe profundo incômodo por parte do setor organizado da mídia audiovisual, quanto das empresas de comunicação em geral, não parece segredo. Afinal, que motivações outras moveram, por exemplo, o jornal O Globo, para, em sua edição de quarta-feira (29/9) dedicar página inteira a uma entrevista com João Eustáquio da Silveira, cientista político e Diretor da Agência Nacional do Cinema (Ancine), destacando a seguinte declaração-manchete: ‘Projeto está eivado de dispositivos autoritários, quando não obscuros’?

O tom panfletário da declaração não esconde, desde a retomada da democracia, o já velho expediente que é sempre invocado, quando alguma voz pretende estabelecer limites seja para o que for. O fato é recorrente em todas as situações. A impressão que fica é a de que, no Brasil, pós-ditadura, qualquer esboço de regramento significa reavivar o fantasma da repressão e da censura.

Diferentemente do teor de alguns artigos constantes na proposição do CFJ, nenhum artigo do anteprojeto da Ancinav pode ser alvo de críticas quanto à sua possível face autoritária, exatamente em razão de o processo a constituir o anteprojeto respeitou, em todos os estágios, as regras que sustentam a prática democrática, além de tudo haver sido (e estar sendo) amplamente divulgado e debatido em inúmeros fóruns. Em nada, pois, se iguala à prática utilizada para a tramitação sinuosa do projeto relativo ao CFJ, conteúdo do qual a sociedade apenas foi informada, quando o dispositivo já estava nas mãos do presidente da República, para o devido envio ao Congresso. Pelo menos, ficou a suspeita de que tudo pudesse ter sido aprovado pelo mecanismo, não pouco freqüente, da aprovação por acordo entre lideranças, instrumento, aliás, nada democrático e que precisaria ser erradicado.

A título de ilustração quanto ao instrumento congressual citado no parágrafo anterior, cabe relatar que, há pouco tempo, deputados denunciaram que, por acordo de líderes, sem nenhuma discussão com as respectivas bancadas, seria referendado pelo governo brasileiro o ‘Plano Quadro’, acordo internacional para fixação de políticas restritivas ao plantio de tabaco no mundo. A denúncia de alguns deputados impediu a consumação do ato, o que obrigou o envio da matéria para discussão no Congresso. Curiosamente, a mídia também sobre tal questão silenciou.

Apenas para outra ilustração, vale consignar que inúmeros pontos alinhavados pelo anteprojeto Ancinav já eram preocupação de Pierre Bourdieu, teórico franco-argelino e falecido em janeiro de 2002 – fato que mereceu de nós um artigo [remissão abaixo] – , quando, em 17/10/1999, publicou, no jornal Libération a íntegra de uma conferência por ele ministrada num evento ao qual se faziam presentes representantes das maiores corporações de mídia no mundo. Na época, o suplemento Mais! (da edição dominical da Folha de S.Paulo) publicou sob o título ‘Pierre Bourdieu desafia a mídia internacional’.

Os 19 parágrafos da mencionada publicação fornecem um rentável mapeamento acerca dos perigos que derivam da fusão entre tecnologia, capital e mídia. A construção midiática (impressa e eletrônica) lida com substância que divulga criação artística, geração de idéias, recortes do cotidiano e entretenimento. Conseqüentemente, não pode, em nome do lucro, ignorar as duas primeiras e restringir-se às duas últimas, com o agravante de ainda, em nome de ‘entretenimento’, expor baixarias, e conteúdos deformantes. Num dos trechos do texto citado, Bourdieu sentencia:

‘Os que fazem o novo mundo da comunicação e são feitos por ele gostam de citar o problema da velocidade, do fluxo de informações e de transações que se torna cada vez mais rápido e, sem dúvida, eles têm parcialmente razão, quando pensam na circulação da informação e na rotatividade dos produtos. Dito isso, a lógica da velocidade e do lucro que se unem na busca do lucro máximo a curto prazo (com as pesquisas de audiência para a televisão, o sucesso das vendas para o livro e, evidentemente, o jornal, o número de anos para o filme) parecem-me incompatíveis com a idéia de cultura.’

Enfim, o anteprojeto, sob a liderança propositiva do MinC, permite que o paradigma cultural brasileiro seja posto na berlinda. Está na hora de pôr cartas abertas sobre a mesa. O que significa, afinal, no âmbito das emissoras de televisão, ‘concessão pública’. A prática demonstra o contrário: elas são geridas como patrimônio empresarial.

Por que a maior parte da sociedade brasileira não tem acesso a emissoras como TV Câmara e TV Senado? Será que somente assinantes têm o direito de acompanhar o desempenho de seus representantes? Se, porventura, o anteprojeto da Ancinav não contempla essa questão, por outro lado, o debate aberto cria espaços para tal, a exemplo de outras tantas questões que não haverão de faltar, considerando o degenerado perfil cultural em vigência e que encontra, no comportamento do sistema midiático, um de seus mais fortes aliados.

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Ensaísta, doutor em Teoria Literária pela UFRJ, professor titular do curso de Comunicação das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha), Rio de Janeiro