Vejo os retratos do ex-governador Sérgio Cabral Filho, cabelos aparados, quase careca, em uniforme de prisioneiro, de frente e de perfil – poses clássicas que logo identificam um fora-da-lei sendo fichado numa repartição policial. O semblante soturno dos derrotados em nada lembra o do político vitorioso, sorriso largo, esfuziante, em sofisticado ambiente festivo, em Paris,
ou determinado, semblante corajoso, enfrentando desafios políticos como presidente da Assembleia Legislativa do estado do Rio, depois no Senado Federal ou ocupando o trono do chefe do Executivo fluminense.
Diante das fotos e da sequência de cenas exibidas repetidamente nos canais de televisão, o meu pensamento viaja para outro personagem, o seu pai, jornalista e escritor Sérgio Cabral, respeitado por todos que o conhecem intimamente, pela retidão do caráter e coerência ideológica, ou admirado pelos leitores de sua imensa obra literária. Eu me incluo entre estes últimos. Apenas duas vezes participei de rodas de bate-papos nas quais ele esteve presente: numa reunião de ex-companheiros do saudoso JB, no restaurante La Fiorentina, há uns cinco anos, e no velório de um jornalista exemplar, meu mestre e maior incentivador de minha carreira, Carlos Lemos, há um ano.
Mas, ultimamente, sua imagem e personalidade têm sido insistentemente parte dos pensamentos agitados pelos noticiários que relatam as atuais turbulências jurídicas e políticas do Brasil-sil-sil…
Como deve estar sendo difícil para ele, Sérgio Cabral, pai, viver esse pesadelo, sabendo que terá de conviver no futuro com outros mais dolorosos, na medida em que os inquéritos contra o filho avançarem até a batida do martelo dos juízes – não apenas o do mais célebre deles, seu xará Moro – decretando o longo tempo que ele deverá amargar como um reles presidiário.
“Onde o Rio é mais carioca”
Comecei a admirar Sérgio Cabral no início de minha carreira no Jornal do Brasil, em 1964, quando soube ser ele o criador do título de uma seção editada no precioso suplemento “Caderno B”, em meia página, aos sábados: “Onde o Rio é mais carioca”.
A frase acompanhou-me pelo resto de meus 30 e tantos anos vivendo no Rio. Por onde eu circulava, e algo ou alguém despertasse a minha atenção por um aspecto que somente no Rio se verifica, vinha-me à mente a ideia: “Eis onde o Rio é mais carioca…”
Havia controvérsias sobre o autor do título, fiquei sabendo mais tarde. Outros nomes, como os dos jornalistas Nonato Masson e Reynaldo Jardim, por exemplo, também eram citados como os verdadeiros pais da expressão. Mas em minha cachola ficou registrado o de Sérgio Cabral – e com o tempo o crédito se impôs, quanto mais eu aprendia a conhecê-lo através de seus textos, todas carregados do jeito carioca de ser.
“Onde o Rio é mais carioca” ocupava meia página e focalizava personagens que se destacavam no pedaço por comportamentos curiosos, bizarros, atraentes, extravagantes, de diferentes áreas profissionais, culturais ou folclóricas, que habitavam aquela, sim, Cidade Maravilhosa, alegre, cheia de charme.
Muitos mereceram a homenagem, fosse a caminho do mar, oferecendo quinquilharias ou acepipes ou, à noite, vendendo flores nos bares, boates ou inferninhos da Zona Sul, onde os acordes da bossa-nova faziam o fundo musical de Copacabana e de uma Ipanema que se tornava mundialmente conhecida, propagada pela música de Tom & Vinicius.
Peraltices irresponsáveis
Aquele Rio seria enriquecido, em junho de 1969, com outra ousada criação de Sergio Cabral, em meio aos temores de uma ditadura militar, que se agigantara no país, apoiada numa tenebrosa sigla, AI-5, em fins do ano anterior. Foi quando Cabral se uniu ao cartunista Jaguar e ao jornalista Tarso de Castro na criação corajosa de um semanário.
Em formato tabloide, O Pasquim – título idealizado por Jaguar, se antecipando às críticas de que se tratava de um “jornaleco” – revolucionaria o mercado editorial, desafiando todos os prognósticos de vida curta diante da censura burra e implacável em todas as áreas culturais. O que segue é a uma longa história vibrante, recheada de humor, seu abre-alas para atrair os leitores. Mas o que se destaca nela são, sobretudo, os capítulos em que se contam a criatividade editorial na resistência e dribles nos censores, e lembram o cerceamento com prisões de seus jornalistas, proibição de circulação, atentados terroristas a bancas de jornais, que ousassem vendê-lo.
Tudo isso já foi contado e recontado em publicações sobre O Pasquim ao longo de sua existência até 1991, quando a lista de colaboradores que assinavam textos e cartuns em suas páginas, além dos três fundadores, se avolumava a cada edição: Ziraldo, Millôr Fernandes, Sérgio Augusto, Paulo Francis, Henfil, Caulos, Fortuna, Claudius, Antônio Callado etc. e bota etc. nisso.
O Pasquim foi mais uma carioquice de Sérgio Cabral – e, como não bastasse, eis a lista de biografias irretocáveis a que ele se dedicou nas horas vagas enquanto desempenhou o cargo de vereador por três legislaturas, de 1983 a 1993, e depois, como membro do Conselho do Tribunal de Contas até 2007: Antônio Carlos Jobim, Eliseth Cardoso, Pixinguinha, Nara Leão, Grande Otelo, Ataulfo Alves.
E mais: tudo que o leitor quiser saber sobre as escolas de samba cariocas, quando, como e onde nasceram, quem as fundou, seus compositores, enredos e sambas-enredos marcantes, está registrado em dois livros, editados em 1974 e 1996. Por tudo isso, houvesse um prêmio para o conjunto de obras que destacaram o Rio mais carioca, não tenho dúvidas para quem o prêmio iria.
Uma pena ver que o seu nome não tenha sido preservado por quem o herdou, como justamente observou o advogado Ayrton Soares no Jornal da Cultura (TV Cultura/SP/21/11) num curto, porém comovente, comentário, que resume tudo o que acima foi descrito, em que se tentou apresentar o verdadeiro Sérgio Cabral distante das peraltices irresponsáveis de seu pimpolho…
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Ivanir José Yazbeck é jornalista e escritor