Thursday, 19 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Por uma internet sem governos

O futuro do endereçamento da rede mundial de computadores volta à discussão. Em setembro acaba o prazo do contrato entre o Departamento de Comércio dos Estados Unidos e a ICANN (Internet Corporation for Assigned Names and Numbers), corporação internacional sem fins lucrativo responsável pela atribuição de nomes e números na internet.

O contrato, firmado em 1998, previa a transição durante a qual a corporação firmaria vários acordos para permitir que o governo norte-americano encerrasse sua função. De lá para cá, o contrato foi prorrogado duas vezes.

Para setembro, estão em debate três alternativas, propostas por diferentes países: nova prorrogação, adoção de um outro acordo que conte com a participação multilateral de governos, ou transformar a ICANN em uma entidade internacional, sem governos, como defende o presidente do Nic.br (Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR), Demi Getschko.

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O acordo da ICANN com o Departamento de Comércio dos EUA acaba em setembro. O que acontecerá depois disso? Será adotado novo acordo, como propõem interlocutores de diferentes países?

Demi Getschko – A gestão da internet não tem diretamente a ver com governos, mas sim com os diversos setores da sociedade, como a Academia e a área privada. Na verdade, havia um governo que tinha um papel específico que, teoricamente, era um processo para que a ICANN transitasse desde sua inauguração até a maturidade e passasse a tocar a gestão independentemente. O acordo com o departamento de Comércio dos EUA começou em 1998, foi renovado duas vezes e espera-se que em setembro ou entra uma outra coisa no lugar ou tem que sumir. Eu, pessoalmente, espero que não haja nada no lugar, porque o que a ICANN faz não tem nada a ver especificamente com governos, tem a ver com a estrutura da internet como um todo e não é desejável que haja um governo ditando as normas.

O governo norte-americano teve alguma interferência na gestão da rede?

D.G. – No período em que o Departamento de Comércio Americano esteve tutelando a transição não me lembro de interferências diretas. Mas sempre houve a possibilidade de interferir. Pessoalmente, gostaria que esse acordo terminasse e houvesse a convicção de que a ICANN já está suficientemente madura para gerir e prestar contas à comunidade da internet como um todo, sem necessidade de novo acordo.

Mas existem propostas de se criar um fórum de governança na UIT ou ONU para substituir a ICANN.

D.G. – É claro que há propostas para substituir o atual acordo. Existe uma de um grupo de países europeus, mas ainda é muito vaga. O ideal é que as coisas andassem somente com um grupo de três ou quatro pessoas, na sede da ONG na Califórnia. Mas se criou uma dimensão política exagerada com base em outros fatores que não são propriamente ligados com a governança da internet básica, como a ICANN, que tem uma posição muito lúcida, de muita credibilidade. Não acho que uma função técnica da rede exija uma gestão intragovernamental, como em controle aéreo, por exemplo. Acho que é uma função que deve ser restrita aos segmentos técnicos da rede e que só em casos de desespero poderia ser possível uma intervenção de outra ordem. A internet não é uma criação só de governo. É uma criação de todos os segmentos e não há uma participação mais forte de um segmento em relação a outro.

Por que os governos estão interessados em intervir na rede?

D.G. – Os interesses dos governos nessa questão se dá, em primeiro lugar, porque a internet está sendo percebida por diversos setores em ordem crescente. A Academia sabia o que era isso desde o começo, no final dos anos 90. O pessoal de telecom, por exemplo, só foi descobrir a internet em 2003, 2004, quando começaram as ofertas de banda larga, antes nem sabia o que era. Os governos, na minha opinião, são o terceiro ou o quarto segmento a descobrir a rede. Agora, caiu a ficha e estão correndo atrás do prejuízo, elaborando legislação para ver se controlam, mas não controlam. Mas acho que esta posição é uma gangorra, vai e volta. A China é um exemplo disso. O governo de lá tentou controlar fortemente a internet, depois aliviou bastante e encerrou-se o ciclo, porque na verdade é muito difícil controlar. No Brasil também descobriram que o buraco é mais embaixo. O presidente do TSE (Tribunal Superior Eleitoral), Carlos Ayres Britto, por exemplo, disse que a proposta de legislação para eleições no país não está levando em conta o que é de fato a internet. Ele fez um belo pronunciamento em relação o que é a rede, claro que um pouco ousado, romântico, afirmando que a liberdade na rede nunca vai ser tolhida, ou coisa assim.

O controle não é necessário?

D.G. – É claro que a gente sabe que há bons e maus elementos na rede, mas de qualquer forma, é difícil controlar, difícil regular, não tenho dúvida. A internet tem lá seus problemas, como as fraudes. Mas não podemos tratar a internet de forma discriminatória.

Então o fim do contrato com o governo americano evitará algum tipo de interferência ou controle na rede?

D.G. – Depois que o contrato for encerrado poderemos discutir outros temas, como, por exemplo, por que a ICANN é uma organização da Califórnia; por que não é uma organização internacional; por que não fica em outro lugar, como Nova Iork, que é sujeita à lei da ONU. Ela não deveria ficar sujeita às leis da Califórnia. Não dá, a priori, para substituir o contrato do Departamento Comercial Americano por um contrato multinacional porque a ICANN é uma ONG da Califórnia e não caberia um contrato com outros países. A questão central é se o contrato continua ou desaparece. No caso de desaparecer, o que será feito para colocar no lugar? Vale a pena colocar algo no lugar? Ou se é melhorar criar um outro tipo de fórum que discuta outros assuntos, que não sejam esses mais técnicos, onde de fato haja uma participação de diversos governos?

Há possibilidade de o contrato com o governo norte-americano ser outra vez renovado?

D.G. – Há possibilidade ainda de o contrato ser renovado porque sempre que acontecem discussões sobre o assunto, o Congresso norte-americano fica relutante em aprovar o seu fim. Quem toca esse negócio é a agência reguladora do setor, mas o contrato para ser encerrado precisa da aprovação do Congresso. É capaz de os congressistas acharem que o fim do contrato representará perda de poder e, numa posição conservadora, apesar da posição do presidente Barak Obama, podem criar uma nova prorrogação, mas espero que isso não aconteça.

O senhor fez parte do conselho da ICANN. Tem possibilidade de ser indicado de novo para lá?

D.G. – Fiz parte da ICANN até maio deste ano. Fiquei lá durante cinco anos como membro, mas continuo acompanhando as reuniões como ouvinte. A diretoria é composta de 15 membros, que vem de vários lugares do mundo, e da América Latina agora só tem um chileno. Existem três vagas a serem ocupadas até o final do ano e esperamos que uma delas venha para a América Latina.

E como vai a internet no Brasil?

No Brasil, a rede corre muito bem. Houve um crescimento no mercado brasileiro acima dos índices da América Latina, acima dos outros índices brasileiros de um modo geral. Quanto aos domínios, estão bastante fortes. Não há nada que indique uma desaceleração, pelo contrário, vamos continuar num ritmo de crescimento de 20% ao ano e ainda estamos numa fase bastante intensa de investimentos, que deve durar ainda dois ou três anos. Depois disso, diminui um pouquinho e o crescimento ficará na casa de 15% ao ano. É claro que ainda existem muitas pessoas que não têm acesso à rede, muitos rincões que não têm conexão, pessoas que não conseguem comprar um micro e outras barreiras de entrada que continuam a impedir um crescimento maior.

Vários setores da sociedade defendem a adoção de uma política pública que dissemine o acesso à internet. O senhor concorda com isso?

D.G. – O Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br) acompanha tudo o que acontece e tem posições importantes, como a defesa do unbundling, mas não temos um papel de propor políticas públicas, que é uma coisa do governo. Mas acho importante para o Brasil ações de inclusão digital, mesmo que não seja com banda larga. Porque a banda larga é uma forma de se estabilizar o usuário na rede, sem que ele tenha que se preocupar com o tempo de conexão. Mesmo que isso não seja factível agora em muitos lugares, porque depende de infraestrutura, pelo menos a inclusão digital é fundamental. Nas estatísticas do CGI, as lan houses são um grande elemento de inclusão digital, então, seria importante aumentar os pontos de acessos públicos. O programa banda larga nas escolas deu um grande avanço. E acho que o programa de banda larga rural poderá trazer benefícios semelhantes. Eu não sei se dá para defender banda larga nas casas de todos os brasileiros, porque ainda tem locais de difícil acesso para se chegar com infraestrutura, mas é preciso aumentar os pontos de acessibilidade nesses rincões, de forma que os moradores dessas regiões consigam usar. Muitas vezes as operadoras levam a banda larga onde há facilidade de meios e de públicos. Nos rincões, elas não irão porque necessitam de grandes investimentos e o retorno comercial é baixo. Nesses lugares o governo precisa complementar.

A utilização da rede elétrica para levar internet às casas, por meio da tecnologia PLC (Power Line Communication), poderá facilitar um programa desse tipo?

D.G. – A rede de energia elétrica será muito boa para usar em pequenas distâncias. Eu não acredito que possa ser usada para fazer backbone ou para fazer conexão de alta velocidade em pontos distantes. Acho que o backbone tradicional precisa chegar lá de alguma forma, aí poderá ser distribuído localmente nas casas. E isso é ótimo porque é mais um competidor na área, mais um fornecedor de acesso à última milha, mas não é uma forma de se chegar lá.