De todos os problemas nacionais, a violência cometida pelo Estado contra determinados grupos tem se apresentado como um dos mais delicados na atualidade – seja aquela praticada de forma negligente, quando o Poder Público não assume o seu papel garantindo educação, saneamento básico, emprego e renda, saúde, entre outros; ou aquelas que em geral também são decorrência dessa ausência. A violência que devasta a nossa sociedade não é uma prerrogativa da nossa contemporaneidade. Começamos com o genocídio dos nativos – tanto através da escravização, como também por meio da ação dos bandeirantes, que saqueavam aldeias, matavam crianças e adultos em busca de ouro.
Transitamos pelo massacre e a exploração escravocrata (os africanos eram raptados de suas origens e forçosamente submetidos à condição de escravos) e ascendemos ao republicanismo com a marginalização étnica regrada por estigmas e preconceitos (as práticas embutidas nas ideologias escravocratas eram amparadas por uma estrutura política e religiosa que legitimava está segregação) e atualmente repousamos em um ‘racismo cordial’ (dissimulado por mil faces e imperceptível nas várias instâncias da sociedade).
A sociedade brasileira foi erigida em uma base monoétnica, engendrada por discursos ideológicos que forjaram a realidade social, organizados para a manutenção de um Estado etnicista dominante. Esse suposto sistema progressista suscitou separatismo econômico e segregação étnica. A ideologia hegemônica objetivava conservar a estabilidade de um determinado grupo. Nos dias de hoje, é possível identificar o abismo que separa os privilegiados dos demais – as mazelas sociais sempre recaíram sob a maioria (afro-brasileiros oriundos dos bairros considerados periféricos e com baixo nível de escolaridade). As causas dessa política, em sua maioria, repousam na questão racial.
Uma ‘mecânica do poder’
O pesquisador Luís Mir descreve o Estado brasileiro como um aparelho ideológico sem pressupostos civilizadores ou pacificadores. Esta afirmativa apenas ratifica a postura de uma máquina de dominação que exerce um poder que controla os centros vitais do seu estruturamento social. Especificando os níveis de desenvolvimento econômico de grupos exclusivos e a permanência de outros, este poder unificado engloba os mecanismos de controle social.
No Brasil, a transição do período autoritário para a democracia consolidou inúmeras mudanças nas práticas de controles estatais. Os métodos se diferenciam do processo escravista imposta durante o século 16 ao 19, pois não se fundamentam nas relações de apropriação dos corpos, mas sim, no disciplinar. Até porque a disciplina dispensa essa relação penosa e violenta da dominação, uma vez que obtém os mesmos efeitos com eficácia maior. ‘Forma-se então uma política das coerções que são um trabalho sobre o corpo, uma manipulação calculada de seus elementos, de seus gestos, de seus comportamentos’ (FOUCAULT, 1975, p. 119).
O corpo humano entra numa maquinaria de poder que o esquadrinha, o desarticula e o recompõe. Uma ‘anatomia política’ que é igualmente uma ‘mecânica do poder’ está nascendo; ela define como se pode ter domínio sobre o corpo dos outros, não simplesmente para que façam o que se quer, mas para que operem como se quer, com as técnicas, segundo a rapidez e a eficácia que se determina (idem).
Simetria na violência
Ainda de acordo com a perspectiva foucaultiana, a disciplina é exercida fundamentalmente por três meios globais e absolutos: o medo, o julgamento e a destruição. Para esse estudioso, o Estado investiu-se do poder de monopolizar o uso da violência, pois é autorizado a usá-la, onde e quando necessário, mas dentro dos limites, para reprimir a população às normas estabelecidas socialmente.
A modalidade da disciplina, enfim, implica uma coerção ininterrupta, constante, que vela sobre os processos da atividade mais que sobre seu resultado e se exerce de acordo com uma codificação que esquadrinha ao máximo o tempo, o espaço, os movimentos. Esses métodos que permitem o controle minucioso das operações do corpo, que realizam a sujeição constante de suas forças e lhes impõem uma relação de docilidade-utilidade, são o que podemos chamar as ‘disciplinas’ (p. 118).
O Estado é a única instituição com respaldo legal para assumir essa postura contra qualquer indivíduo ou grupo. E para isso, em determinados momentos, se utiliza de instrumentos de repressão e coerção (violência extrema), objetivando preservar a ordem pública. Esses aparelhos se compõem de poderes transversais que se mascaram através das instituições modernas que reprimem abusiva e inconstitucionalmente por meios dos órgãos administrativos, especificamente o poder policial.
Ainda de acordo com Luis Mir (p. 911) a finalidade é limitar a violência a alguns grupos e indivíduos possíveis de neutralizar ou excluir. Então, instala-se uma simetria na violência, devolvendo-a a seus possíveis ‘autores’, os quais serão intimidados e aterrorizados. Essas atitudes (preventivas) podem explicar e ter certa legitimidade em contextos precisos, mas não são suficientes para construir um modelo de prevenção.
Intimidações, recompensas, extorsão
A violência oficial está ligada, na maioria das vezes, à violência estrutural, que se manifesta nas desigualdades sociais (classes menos favorecidas, formadas majoritariamente por afrodescendentes). Isto é, se o aparelho policial participa ativamente na manutenção e reprodução da ordem pública e a forma como ele opera e trata a populações pobres e não-brancas depende de controles institucionais externos (ouvidoria) e internos ao aparelho policial.
‘A legitimidade no uso da força é embasada pelo argumento de ser a única reação possível frente à desordem’ (MIR, 2004, p. 406). De acordo com Hélio Santos (2005, p.134), o alto comando dessas corporações foi estruturado e formado por pessoas que serviram como braço auxiliar, por muitos anos, no esquema de repressão articulado durante o regime militar.
O poder policial está alojado na sua estrutura central: age a partir de todos os seus agentes, que ocupam funções exclusivas para defendê-lo e mantê-lo. A porção de poder de cada um desses membros é determinada pelo grau hierárquico ocupado dentro do seu trabalho e pelo espaço que ocupa (MIR, 2004, p. 415). ‘Enquanto os adjetivos da corporação policial num regime democrático são educação, prevenção, coerção, e só em última estância repressão violenta, muito provavelmente essa polícia militarizada agravará os processos de polarização’ (idem, p. 407).
Esse agente (do Estado) se apossa de um pedaço de poder que não lhe pertence e utiliza-o para ações de qualquer natureza: comissões, intimidações, recompensas financeiras, extorsão, além de violência de todos os tipos contra a pessoa e contra a população. Utiliza a atribuição de poder e competência que lhe foi atribuída para negar (total ou parcialmente) a vigência da lei (p. 416).
Operação de ‘limpeza’
Os policiais estão autorizados a usar a força física contra os indivíduos no cumprimento do dever legal que, no Brasil, é definido na Constituição Federal como a preservação da segurança pública e, mais especificamente, da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio. ‘A verdadeira faxina étnico-racial feita no Brasil pelas polícias não sensibilizou a sociedade: os brancos – e, o que é pior, tampouco os negros – não se deram conta do que ocorreu’ (SANTOS, 2005, p. 136).
Conforme Mir (2004), o povo humilde e pobre, majoritariamente constituída por afro-brasileiros, vive espremido entre marginais que infestam os bairros pobres das periferias e a própria polícia, que na maioria das vezes age de forma truculenta contra esses indivíduos. ‘Todavia, no caso da violência policial, não só os afro-descendentes mais humildes correm risco. Aquilo que poderíamos chamar de classe média negra e até mesmo os raros ricos sofrem a truculência do racismo da polícia’ (SANTOS, 2005, p. 138).
A militarização da polícia e dos seus atos simultaneamente ao cerco repressivo e territorial das zonas urbana perigosas é apresentada como uma forma política pragmática (e ideologicamente livre), particularmente adequada para responder aos desafios da criminalidade como políticas repressivas ecléticas que funcionam (MIR, 2004).
A forma da atuação maciça das Polícias Militar e Civis nos bairros chamados ‘perigosos’ é concebida como uma operação de ‘limpeza’, na maioria das vezes, vitimando as mais empobrecidas faixas da população. A ideologia utilizada pelo Estado para justificar a sua atuação é que, se o criminoso fica impune, logo ele aspira cometer outros crimes mais graves porque no delinquente subsiste a certeza de que não receberá punição. Todos os cidadãos pegos em falta devem ser firmemente reprimidos para impedir que se desenvolvam comportamentos criminais mais graves.
‘O que escandaliza é a impunidade’
O objetivo é exercer sobre ele uma coerção sem folga, de mantê-lo ao nível mesmo da mecânica – movimentos, gestos atitude, rapidez: poder infinitesimal sobre o corpo ativo. O objeto, em seguida, do controle: não, ou não mais, os elementos significativos do comportamento ou a linguagem do corpo, mas a economia, a eficácia dos movimentos, sua organização interna; a coação se faz mais sobre as forças que sobre os sinais; a única cerimônia que realmente importa é a do exercício (FOUCAULT, 1989, p. 118).
Embora a violência fosse um fenômeno endêmico na sociedade brasileira, sua visibilidade ganhou destaque na transição do período autoritário para a democracia. Mesmo com o fim do militarismo, a violência institucional contra o segmento mais visado para as práticas abusivas do Estado não chega ao fim. Constantemente, esses indivíduos, que se encontram marginalizados, são confundidos como bandidos (pois se enquadram no perfil: negro, homem, jovem, procedente das comunidades carentes) e passíveis de um controle social.
De acordo com Hélio Santos (2001, p. 161), a violência policial contra negros e negro-mestiços é cometida igualmente por policiais brancos e não-brancos. Muitas vezes, o policial negro chega a ser mais violento que o policial branco, quando se trata de vítimas negras. Para pessoas com baixa auto-estima e sem identidade (pois não se assumem como negro) faz sentido rejeitar os de seu próprio grupo étnico. Como tais pessoas não valorizam a si mesmas (por serem negras), estendem esse sentimento aos seus semelhantes.
Graves violações dos direitos humanos praticadas por policiais não se encontram desacompanhadas neste ciclo, ao que parece crescente, de violência ilegal e de vingança privadas […], uma verdadeira explosão de litigiosidade no seio civil, em particular nos bairros onde habitam majoritariamente classes trabalhadoras de baixa renda, resultando em desfechos fatais (ADORNO, 2002, p.17). ‘A violência policial contra negros é um fenômeno mundial. Entretanto, aqui no Brasil, o que escandaliza a todos é a impunidade’ (SANTOS, 2001, p.137).
Brutalidade e delinqüência
Para Muniz Sodré (2006, p. 67), nessa exasperante contigüidade da miséria (fome, epidemias de controle relativo, analfabetismo), com fluxo concentrado de dinheiro no interior da própria comunidade marginalizada e em face da realidade material e simbólica da cidade moderna, emerge a violência anômica como uma ‘contralinguagem’, isto é, uma ‘linguagem’ que não se instaura a partir das regras das instituições civis hegemônicas na sociedade global, mas a partir de sua ausência ou de seu desnaturamento abusivo.
É nesse clima de conflitos que crescem as ações de grupo de extermínio e de justiceiros, que buscam por um senso de justiça privada frente a circunstâncias consideradas insuportáveis do ponto de vista da segurança pública. Geralmente, esses grupos são formados por civis, cidadãos comuns, habitantes dos bairros populares, agindo sobre contrato, acordo ou cumplicidade de outros agentes sociais, notadamente policiais, comerciantes locais, os quais não se envolvem diretamente nas ações. Suas vítimas são moradores oriundos das classes populares urbanas. Ou seja, o estereótipo perfeito do bandido, pois se enquadram neste perfil negros ou afro-descendentes do sexo masculino, na faixa etária dos 15 aos 25 anos, e com baixa escolaridade.
Em parte, existe o problema relevante dos policiais em serviço que usam força excessiva e praticam execuções extrajudiciais em esforços ilegais e contraproducentes para combater o crime. Mas também existe o problema dos policiais que não estão em serviço que se congregam para formar organizações criminosas que também participam de assassinatos (ONU, 2008, p. 6).
Suspeita-se que as motivações principais para as práticas do extermínio contra esse grupo residem na falta de pagamento de dívidas contraídas com o comércio e o consumo de drogas. Certo ou não, a população procedente das classes menos favorecidas fica à mercê da brutalidade policial aliada à delinquência.
‘Reação’ à abordagem policial
Em Salvador, cuja população é de 2.948.733 milhões de habitantes – com 85% constituída por afrodescendentes –, as chances de um negro ser atingido por uma bala ou morto pela polícia são 10 vezes maiores que a população branca. Os dados da Secretaria da Justiça, Cidadania e Direitos Humanos (SJCDH) da Bahia do ano de 2008 demonstram que 80% da população carcerária do Estado da Bahia é composta por afrodescendentes e que essas pessoas seriam oriundas dos bairros periféricos. Como bem afirma Mir, não são exclusivamente os pobres que cometem crimes, mas são os alvos centrais do rigor das leis penais. Etnicamente, as prisões são um macrocosmo social e econômico da violência étnica, social e econômica.
A polícia foi criada para proteger uma pequena classe dominante da grande classe de excluídos, em uma perspectiva de servir de barreira física entre os ditos ‘bons’ e ‘maus’ da sociedade. Uma polícia que precisava somente de vigor físico e da coragem inconseqüente; uma polícia que atuava com grande influência de estigmas e de preconceitos (SANTOS, 2001, p.134).
Outra forma de violência também característica das nossas polícias é o uso excessivo da força, avaliável pela altíssima letalidade da ação em diversas partes do país, mais especificamente nos bairros ditos periféricos. Na maioria das ações com vítimas fatais, os argumentos apresentados nos ‘autos de resistências’ são os mesmos: reação à abordagem policial. Esses dados reforçam a idéia de que muitas intervenções policiais, particularmente em favelas, não têm como objetivo apenas prender o suspeito (população de mais baixo estrato socioeconômico, constituída essa, como não poderia deixar de ser, por maioria esmagadora negra e afrodescendente), mas eliminá-lo definitivamente.
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Bacharel em Comunicação Social com Habilitação em Jornalismo pela Faculdade 2 de Julho, Salvador, BA