O sociólogo francês Edgar Morin, no livro Cultura de Massas no Século XX: o espírito do tempo (1962), levanta uma característica da mídia de sua época que gritava aos seus olhos. Ele dizia que a imprensa tinha uma habilidade única de jogar personalidades no alto do olimpo, colocando-as em maior destaque do que suas atribuições culturais. Diz ele que “esses olimpianos não são apenas os astros, mas também os campeões, príncipes, reis, playboys, exploradores, artistas célebres, Picasso, Cocteau, Dalí, Sagan… Margaret e B. B., Soraya e Liz Taylor, a princesa e a estrela se encontram no Olimpo da notícia dos jornais, dos coquetéis, recepções, Capri, Canárias, e outras moradas encantadas. A informação transforma esses olimpos em vedetes da atualidade. Ela eleva à dignidade de acontecimentos históricos acontecimentos destituídos de qualquer significação política, como as ligações de Soraya e Margaret, os casamentos ou divórcios de Marilyn Monroe e Liz Taylor, os partos de Gina Lollobrigida, Brigitte Bardot, Farah Diba ou Elizabeth da Inglaterra”.
Meio século após esta observação certeira, o jornalismo cultural habituou-se a cultivar deuses descartáveis, ainda mais quando a crise financeira pede estratégias para segurar leitores e espectadores pagantes. E nada como transformar o mundano num romance hollywoodiano que toma todos os telejornais do dia, como a notícia “histórica” de que Kate acabou de dar à luz a Charlotte, a princesinha. Grandes consumidores dos impostos dos ingleses, a família real sabe que precisa dar este gostinho aos seus súditos, e se adapta ao furor midiático. Mas revistas, telejornais – e não só os programas de fofoca – elevam à dignidade de um acontecimento histórico algo absolutamente banal. Príncipe William e Kate levam os filhos à missa de Natal, diz o portal Glamour, em sua cobertura “cultural”. William e Kate levam George e Charlotte a festa infantil no Canadá, estampa o G1 na página principal.
O culto à personalidade é muito mais antigo que a citação de Morin, mas hoje, ele tomou conta até de veículos com cobertura cultural séria. A Globo News dedicou horas e horas ao Prêmio Nobel de Literatura concedido a Bob Dylan sem um minuto sequer de um especialista cultural explicando os méritos musicais do compositor, nas melodias, letras, instrumentos etc. Será que colocar um trecho de Blowin’ in the Wind é o suficiente para todos os telespectadores entenderem o quão genial é Dylan?
O jornalismo cultural também é prodigioso em preparar o Olimpo para os próximos deuses, ainda que não tenham dado nenhuma fagulha de talento para justificar o espaço nobre na imprensa. Mas ser filho de famoso já é ticket suficiente, certo? Filha de Tom, Maria Cavalcante entrevista famosos na web e sonha em atuar, estampa o UOL. Calma Maria, logo logo, graças a exposição do seu talento ainda em gestação, um convite para novela irá surgir. E então, mais perfis surgirão sobre sua vida pessoal do que, necessariamente, suas técnicas de atuação.
Olimpianos de carteirinha
Olimpianos de carteirinha ganham até a simpatia da imprensa cultural quando seus méritos não são devidamente reconhecidos. O jornal O Estado de Minas, por exemplo, estampou a notícia: Depois da derrota de Beyoncé, artistas acusam Grammy de racismo. Na matéria, artistas solidários com a pobre cantora que levou apenas dois prêmios entre nove indicações. Afinal, disco que vende mais também tem que ganhar mais prêmio, na lógica cultural-mercadológica contemporânea. No entanto, mais grave ainda é que o jornal não coloca um crítico sequer para balizar ou criticar a opção do Grammy. Afinal, o disco valia ganhar nas demais indicações, comparado com o trabalho dos concorrentes? O leitor deste jornal nunca saberá.
Manter-se no Olimpo também exige dos artistas uma boa dose de altruísmo com relação à reclusão de suas vidas pessoais. Uma matéria de destaque na seção de Cultura da IstoÉ dizendo que Ana Hickmann comemora 19 anos de casada certamente ajuda a apresentadora a se manter firme no pódio televisivo ainda que, novamente, seja a vida pessoal, e não seu desempenho como apresentadora, que esteja em jogo, em análise.
Impossível não mencionar, também, o pensamento de outro sociólogo francês, Pierre Bourdieu, com relação aos hábitos do jornalismo cultural. Dizia ele que, “neste mercado, o sucesso leva ao sucesso: contribui-se para fazer o best-seller publicando suas tiragens; os críticos não podem fazer nada de melhor por um livro ou uma peça do que lhe ‘predizer o sucesso’”. Apropriado ao pensamento dele a chamada do gaúcho Zero Hora, que diz: Autora de ‘Harry Potter’, J.K. Rowling, anuncia dois novos livros. Ainda nem foram lançados, muito menos analisados criticamente, mas com o espaço Vip no olimpo midiático, é certo que venderá muito, influenciando de sobremaneira parte da crítica.
Criar e manter olimpianos não é uma exclusividade do jornalismo cultural. O jornalismo esportivo é craque nisso também, às vezes num tom ainda mais constrangedor, ao chamar constantemente, ano após ano, de “herói nacional” Ayrton Senna ou de “fenômeno” jogadores como Ronaldo. Morto ou aposentado, estes esportistas nada precisam fazer para manter sua imagem no topo dos deuses esportivos.
Mas no jornalismo cultural, o hábito de cultivar estrelas em detrimento de analisar os seus feitos artísticos acaba criando outro hábito perigoso, o de associar fama a sucesso profissional. Ter ou manter um espaço ativo na mídia com sua própria imagem ou vida pessoal pode garantir, até aos artistas sérios, altas posições nos campos teatral, cinematográfico, televisivo, literário, musical e das artes plásticas. E por falar de artes plásticas, que tal encerrar o texto com esta notícia “histórica” estampada em O Globo: Romero Britto faz quadro em homenagem ao pai de Kim Kardashian.
*** Franthiesco Ballerini é jornalista, autor do livro ‘Jornalismo Cultural no Século 21’