Repórter da Pública percorre a história do Maracanã, patrimônio cultural destruído com autorização do Iphan e abandonado pelo poder público depois de mais de R$ 1,3 bilhão gasto em obras suspeitas de alimentar a corrupção
O Maracanã era a casa coletiva dos cariocas e dos brasileiros apaixonados por futebol. O mítico templo do esporte bretão nunca intimidou o torcedor; ao contrário, era ali que ele se sentia à vontade. No dia 2 de junho de 2013, porém, o estádio mais popular do planeta – já reformado para acolher a próxima Copa do Mundo – se apresentou tão metamorfoseado que chocou frequentadores. “Fiquei catatônico”, disse o historiador e antropólogo Marcos Alvito à Pública. “Eu, que me sentia tão pertencente àquele lugar, de repente tive a sensação de estar perdido, deslocado. Minha então namorada me disse que fiquei cinco minutos calado e perplexo.”
É como se parte do público indagasse naquele amistoso entre Brasil e Inglaterra: “Cadê o meu Maracanã?”.
Trazendo essa pergunta para o presente, pode-se dizer que o Maraca – como o chamam os íntimos – está envolto em conversas que nada têm a ver com o futebol, mas com propinas, superfaturamento das obras e uma patética discussão sobre quem vai cuidar dele daqui para a frente. Uma metáfora à perfeição do Rio de Janeiro diante de um governo estadual atarantado por imensas crises fiscal e de credibilidade.
Para explicar o que fizeram com o Maracanã, o único estádio brasileiro tombado pelo Iphan, é preciso retomar esse processo, iniciado nos anos 1980, e percorrer a trilha das sucessivas reformas que alteraram profundamente o seu projeto original, apesar de protegido por lei desde o ano 2000.
Em 1983, o então secretário de Cultura do Ministério da Educação e Cultura (MEC), Marcos Villaça, teve um estalo. Ao ouvir uma sonora vaia devido a um passe errado do lateral-esquerdo Júnior em uma partida entre Brasil e Argentina, ficou tão impressionado com aquele clima que solicitou ao Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) o tombamento do estádio.
Entrevistado pela Pública, Júnior disse que nunca tinha ouvido falar que ele, literalmente por linhas tortas, havia inspirado a ideia do tombamento. ‘’Pena que foi por intermédio de um passe errado’’, disse ele, sem conter o riso.
Para um dos maiores laterais do Flamengo de todos os tempos, porém, o erro maior foi a extinção em 2005 da geral, o coração do estádio, onde os torcedores ficavam em pé, bem perto dos seus ídolos. “Quando eu ia bater um escanteio, alguém sempre berrava para bater dessa ou daquela forma. Se desse certo, berrava de novo: ‘Eu falei , eu te disse’”. “A energia do Maracanã era algo inexplicável. Só quem viveu pode ter a dimensão. Hoje, com todas as reformas, está bem diferente. Mas alguma coisa ainda paira por ali’’, disse o ala da seleção brasileira da Copa do Mundo de 1982.
A geral foi extinta sob grande comoção popular quando se fechou o estádio para as obras dos Jogos Pan-Americanos de 2007. A reforma custou mais de R$ 300 milhões e o Maracanã reabriu mudado – no lugar da geral, cadeiras numeradas; o campo, rebaixado, distante do torcedor. Isso apesar de ser um patrimônio cultural tombado.
Desde 2000, o estádio está inscrito no Livro do Tombo Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico do Iphan, onde há mais dois livros de tombo: o Histórico e o de Belas-Artes. A categoria em que foi incluído acabou dando margem a uma falsa polêmica com o objetivo de permitir sua descaracterização arquitetônica. “Optei pelos aspectos etnográfico e paisagístico, embora, é claro, o Maracanã também tenha valor histórico e arquitetônico. A forma de torcer, a própria formação de torcidas e sua imagem da perspectiva de uma vista área o transformaram em um verdadeiro templo”, disse a arquiteta Cláudia Girão à Pública sobre o parecer feito em 2000 para o tombamento do estádio.
Outro parecer, esse do conselheiro do Iphan Nestor Reis – professor de história de arquitetura da Universidade de São Paulo –, deixa clara a relação indissociável entre o estádio-monumento e sua etnografia. “O urbanismo e a arquitetura (sobretudo as obras de uso coletivo) têm uma dimensão simbólica que ultrapassa os limites dos aspectos utilitários. Mas poucas vezes a monumentalidade reúne qualidades simbólicas de caráter democrático. Em geral, as obras monumentais são afirmações de poder sobre o povo. Neste caso, ocorre o contrário. O Maracanã tem a monumentalidade da massa que o utiliza, à qual representa. Não deve ser descaracterizado”, escreveu o arquiteto.
Mais do que descaracterizado, o Maracanã foi mutilado. Como diz o jornalista e escritor João Máximo, o que houve, na verdade, foi um aniquilamento do caráter popular do estádio. Autor do livro Maracanã, meio século de paixão, Máximo lembra que, desde sua inauguração, o Maraca teve mistura não só de classes sociais como de gênero. “Construíram um estádio para o povão. Além disso, o Maracanã passou a receber também meninas e senhoras. Antes, estádios da cidade, como o de São Januário [do Vasco] e da Gávea [do Flamengo], só eram frequentados por homens.” Máximo acompanhou como adolescente as obras para a Copa de 1950. “Era o programa da garotada, que ficava bem ouriçada com aquela obra gigantesca. Ficávamos dentro dela, até o dia que a visitação passou a ser proibida.”
A queda da marquise
O estádio foi inaugurado em 1950 e maravilhou os cariocas com o gigantismo capaz de abrigar 200 mil pessoas, como provaria a torcida presente na derrota do Brasil para o Uruguai na final da Copa do Mundo meses depois. A magnífica marquise, quase “flutuante”, deixou o público boquiaberto e se tornou símbolo do Maracanã. Neto de Antônio Alves Noronha, que fez o cálculo estrutural da marquise, João Noronha contou à Pública que seu avô sempre comentava que operários e engenheiros ficavam receosos de ficar sob aquele imenso teto sem que pilares o sustentassem: “Foi quando meu avô decidiu ficar abaixo dela, após retirar os andaimes que teoricamente serviam para escorá-la. Ela nunca teve qualquer indício de que iria cair, e sua permanência seria uma questão de manutenção. Foi totalmente desnecessário destruí-la.”
Em 2011, a marquise foi derrubada para dar lugar a uma cobertura com lonas de teflon e fibra de vidro, bem à moda de arenas europeias. A promessa feita durante o Pan, de que o estádio já estaria preparado para a Copa de 2014, se esfacelou em 2010 quando as arquibancadas foram destruídas e o estádio, radicalmente alterado para adequar-se aos padrões da Fifa, de acordo com a justificativa oficial. O custo da obra ultrapassaria R$ 1,3 bilhão.
Quem aprovou a destruição da marquise foi Carlos Fernando Andrade, então superintendente regional do Iphan no Rio de Janeiro, que já havia autorizado o extermínio das arquibancadas. A justificativa para aprovar as reformas que desfiguraram o estádio era que ele havia sido tombado por seu valor etnográfico, não pela arquitetura, que, portanto, poderia ser alterada.
Uma total insanidade na visão da ex-diretora da área de Patrimônio Material e Fiscalização do Iphan, a advogada Sônia Rabello, que também questiona a autoridade de Carlos Fernando para tomar essa decisão. “Carlos Fernando não é um funcionário de carreira do Iphan. Ele tomou essa decisão sem qualquer parecer técnico do Iphan”, disse à Pública. Sônia estranha também a omissão do então presidente do Iphan nacional, o arquiteto Luiz Fernando de Almeida. “Ele deveria ter cancelado a autorização dada por Carlos Fernando e pedido uma reunião com o Conselho Consultivo do Iphan nacional.” Almeida, ao deixar o Iphan, foi trabalhar no Museu de Arte do Rio de Janeiro (MAR), da Fundação Roberto Marinho, na região portuária. A reportagem da Pública entrou em contato com a assessoria de imprensa do museu, mas não obteve retorno.
Antigo conselheiro do Iphan, o diretor da Faculdade de Direito da Fundação Getulio Vargas, Joaquim Falcão, deixa claro que, mesmo concordando com a categoria de tombamento do Maracanã – a etnográfica –, “uma edificação tombada não pode ser descaracterizada”. Além disso, explica, o Conselho Consultivo teria de ser ouvido antes de uma decisão como essa. “Ele [o Conselho] adquiriu não um poder de fato, mas um poder moral ao longo dos anos, devido à importância de seus conselheiros. Nomes como o antropólogo Gilberto Velho, do poeta Manuel Bandeira e do arquiteto Nestor Reis deram essa estatura ao Conselho do Iphan”, disse à Pública.
Em agosto de 2011, depois da derrubada da marquise, uma reunião do Conselho colocou em xeque o ofício do superintendente regional, que não compareceu ao encontro. Estarrecidos, os arquitetos Cláudia Girão e Nestor Reis viram sua argumentação pelo tombamento do Maracanã por seu aspecto etnográfico ser utilizada por Andrade para justificar a não relevância arquitetônica do estádio. “Ele distorceu o que nós escrevemos para o tombamento, que acabou se realizando em 2000. Foi extremamente antiético”, disse Cláudia à Pública. Em ata, Nestor Reis chegou a usar a expressão “má-fé” e a palavra “crime” para se referir à decisão de Andrade: “Como conselheiro relator, me sinto profundamente revoltado pelo modo como meu parecer foi utilizado, com má-fé, para inverter o sentido de tudo aquilo que escrevi. Como paulista pude, neste plenário, dizer: ‘o Maracanã é de todos os brasileiros’. Está escrito isso. Não conheço obra de demolição em edifício tombado; nunca vi. Só conheço obra de restauração e conservação, aqui e no mundo inteiro. Destruir obras tombadas é crime e todos aqueles que participam disso são responsáveis criminalmente. Pode haver processo, pode não haver processo; mas é crime”.
À Pública, Carlos Fernando Andrade não quis responder às acusações de Cláudia Girão e de Nestor Reis. “Eu entendi o que eles entenderam: a importância do Maracanã é etnográfica”, disse. O ex-superintendente do Iphan afirmou também que “o poder local” lhe havia trazido estudos da Empresa de Obras Públicas do estado (Emop) dizendo que a marquise oferecia perigo aos torcedores. “Me disseram que aquilo iria cair”, afirmou à Pública.
Em entrevista ao jornal O Dia, a engenheira espanhola María del Cármen Andrade, contratada pelo governo do estado, afirmou que a marquise não precisava ser demolida. “Algo tinha que ser feito. Mas demolir não era imprescindível, também poderiam ser feitos reparos”, afirmou ela em maio de 2011, quando do início da demolição e em contraponto à afirmação de Carlos Fernando Andrade com base nos engenheiros da Emop.
O Ministério Público Federal indiciou Carlos Fernando Andrade, que terminou por ser absolvido. O mesmo ocorreu com o presidente da Emop, Ícaro Moreno, duramente criticado por Nestor Reis na reunião do Conselho.
O “poder local” a que Carlos Fernando se referia tinha como representante máximo o então governador Sérgio Cabral Filho (PMDB), hoje preso preventivamente em presídio em Bangu, na zona oeste do Rio, sob a acusação, entre outras, de ter recebido propina das empresas que fizeram obras no Maracanã – Odebrecht e Andrade Gutierrez. No início das obras, em agosto de 2010, o consórcio incluía a construtora Delta, que abandonou a empreitada em abril de 2012, sob a acusação de desvio de dinheiro público em outras obras e ligação com o contraventor Carlinhos Cachoeira. De acordo com a Folha de S.Paulo, o Ministério Público do Rio de Janeiro solicitou que Odebrecht, Andrade Gutierrez e a própria Delta devolvam R$ 198,5 milhões aos cofres públicos. Tal valor foi calculado pelo Tribunal de Contas do Estado (TCE). Parte dele também deve ser devolvido por Hudson Braga, ex-secretário de Obras do governo do estado, preso na mesma operação que colocou Sérgio Cabral Filho atrás das grades. Atualmente, quem cuida do caso do Maracanã são procuradores da força-tarefa da operação Lava Jato.
O sonho de Havelange
Em 1998, o então presidente da Federação Internacional de Futebol (Fifa) João Havelange, aproveitando-se de seu prestígio em alta, fez uma provocação bravateira. “Em minha opinião, o Maracanã deveria ser implodido”, disse ele em uma entrevista para a revista Veja. E explicou: “Desde que a televisão passou a transmitir os jogos com regularidade, os estádios gigantescos deixaram de ser necessários. Em seu lugar, deveria erguer-se um novo, para no máximo 80.000 pessoas, com estacionamento, melhor utilização do espaço, segurança e conforto. Poderia ter hotel, supermercado, shopping center, o que permitiria sua utilização permanente”, disse à revista.
Bingo! Em 2012, o governo estadual, então sob o comando de Sérgio Cabral Filho, contratou a IMX, empresa do empresário Eike Batista, para produzir um estudo de viabilidade econômica do Maracanã com a diminuição drástica do público, estacionamento, shopping center e, obviamente, áreas vip. À época, segundo a Folha de S.Paulo, a empresa de Batista foi a única interessada a participar da licitação para fazer o estudo, pelo qual recebeu R$ 2,4 milhões. Em 2013, o deputado estadual Marcelo Freixo (PSOL) fez um discurso contundente em plenário contra o relatório da IMX. Em entrevista à Pública, ele destacou a desfaçatez do texto em assumir que o objetivo era mudar o perfil do torcedor que frequentava o estádio. “Está escrito no estudo que os clubes iriam ganhar mais dinheiro porque os ingressos ficariam mais caros. Ou seja, era a intenção de elitizar o estádio assumida sem qualquer vergonha”, lembra Freixo. “A experiência internacional mostra que conforto e segurança têm efeito expressivo na frequência de usuários em equipamentos voltados a entretenimento, atraindo um público que não utilizava esses espaços, inclusive com maior renda e disposição de consumo”, dizia outro trecho do relatório.
Em 2013, a IMX se somou à Odebrecht e à AEG no consórcio Maracanã S.A., vencedor da licitação estadual para administrar o estádio. O processo licitatório foi questionado pelo MPE sob a alegação de que a IMX havia obtido vantagens por ter feito o estudo de viabilidade econômica, mas a Justiça acabou permitindo que a transação fosse adiante. À Odebrecht coube 90% da concessão da administração; às outras duas, 5% cada. Pouco depois, a IMX deixaria o consórcio – àquela altura a empresa não pertencia mais ao empresário Eike Batista, hoje preso sob acusação de pagar propina a Sérgio Cabral Filho.
Com o fim da Copa do Mundo de 2014, a administração do estádio passou a ser feita pelo Comitê Rio 2016 em função dos Jogos Olímpicos no Rio. Depois da Olimpíada, o Maracanã foi deixado de lado. O consórcio formado pela Odebrecht (com 95% das ações) e a AEG (5%) alegou que o Comitê Rio 2016 não deu fim às obras necessárias para que ele assumisse a administração do estádio. Em janeiro deste ano, uma liminar da 4ª Vara de Fazenda Pública do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro determinou que a concessionária Maracanã S.A. retomasse a operação e manutenção do estádio, ainda abandonado.
Na verdade, a concessionária se desinteressou do estádio desde que o governo do estado refez o contrato de concessão em janeiro de 2014. O novo contrato incluía a manutenção do Centro de Atletismo Célio de Barros, o Parque Aquático Júlio de Lamare, o Museu do Índio e a Escola Municipal Friedenreich – todos, como o Maracanãzinho, integrantes do Complexo do Maracanã. O plano original do consórcio era substituir os equipamentos públicos por lojas e estacionamentos, mas isso se tornou impossível depois da gritaria geral contra o projeto, a partir das jornadas de junho de 2013.
***
Rogério Daflon é jornalista e membro da equipe da Agência Pública