De todas as enormidades que os governistas disseram ou escreveram sobre a matéria de Rohter – incluíndo ‘Se fosse no Japão e um jornalista tivesse falado mal do imperador, também seria expulso’ (Luiz Gushiken, citado pelo Globo) e ‘A reportagem atinge a soberania nacional’ (José Dirceu, citado pela Folha) – a palma, não propriamente de honra, vai para o assessor especial de Lula, Frei Betto, pelo artigo ‘O porre do presidente’, no Globo de quinta-feira.
Este leitor acha que só excepcionalmente a crítica de mídia deve considerar artigos opinativos. Uma razão para fugir à regra pode ser a identidade de quem os escreveu. Outra, o seu conteúdo, quando manifestamente falso, no todo ou em parte. Ambos os critérios se aplicam ao texto mencionado.
Frei Betto é mais do que uma celebridade em certos meios. É um cidadão pago com dinheiro público para assessorar o presidente da República, de quem, faz muitos anos, é amigo e interlocutor próximo. Por isso – e pelo que revela do governo que o trouxe para a função influente que exerce – o seu escrito não pode passar batido.
Ele começa por citar, com aprovação, o julgamento do falecido Henfil de que o New York Times ‘não pode ser levado a sério’. O que não deveria ser levado a sério é esse disparate. O NYT é simplesmente o jornal mais influente do mundo.
Impossível portanto não levá-lo a sério, mesmo que se imagine que ‘sempre (grifo acrescentado) se aliou à política colonialista e intervencionista da Casa Branca’. Se assim fosse, teria apoiado e não criticado a invasão do Iraque.
Há também quem acredite que o homem surgiu na face da Terra no sexto dia da criação, como se lê na Bíblia, e que o evolucionismo de Darwin é uma lorota. De novo: dependendo de quem acredite nisso, o fato merece registro.
O articulista pergunta, retoricamente, por que o Times ‘não segue as pegadas do Washington Post e denuncia as torturas que as tropas americanas infligem aos iraquianos’.
Aqui não há escapatória. Ou ele não sabe do que está falando ou está falando uma inverdade. É mau para o país ter um presidente da República cujo assessor especial é ou desinformado ou mentiroso. Os fatos:
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Primeiro, o Post, ao contrário do Times, apoiou a guerra ao Iraque.**
Segundo, o Post publicou, como que escondida, na página 24, a foto da tortura em Bagdá que deu antes do NYT, em 30 de abril. Depois, em 10 de maio, quando o NYT estampou na primeira página a foto de um prisioneiro iraquiano nu ameaçado por cães segurados por guardas, o Post fez o mesmo – na página 19.Qualquer foca há de saber o que significa – jornalisticamente e politicamente – para um órgão de imprensa dos Estados Unidos a decisão de soterrar ou escancarar fotos tão devastadoras para o governo do país.
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Terceiro, nenhum jornal americano publicou mais matérias do que o NYT sobre as torturas em Abu Grahib, incluindo depoimentos de prisioneiros e informações oficiais reservadas.**
Quarto, o NYT pediu em editorial a cabeça do secretário de Defesa Donald Rumsfeld – antes que o repórter Seymour Hersh, na edição desta semana do New Yorker, o acusasse de ter dado carta branca aos interrogadores no Iraque.Dupla autoridade
Mas que podem os fatos diante das convicções (ou dos artifícios da propaganda) que transpiram santa indignação? “Por que [o NYT] não clama contra o campo de concentração, avesso à tradição jurídica, que os EUA instalaram na base naval de Guantánamo?”, indaga o texto?
Adianta responder que o jornal fez isso não uma, não duas, mas diversas vezes? A última, por sinal, ainda agora, quando a Suprema Corte começou a julgar se os presos da base têm direito ao devido processo legal ou, pelo menos, à proteção da Convenção de Genebra.
O artigo afirma que ‘algo no governo Lula incomoda o NYT‘ e cita, entre os motivos do alegado desconforto, os Estados Unidos terem sido punidos pela Organização Mundial de Comércio por sua política algodoeira.
Custa crer – para dizer o menos – que o autor desconheça a bateria de reportagens e editoriais publicados meses atrás pelo Times frontalmente hostis ao protecionismo agrícola americano. Um dos editoriais, talvez o mais contundente, investiu contra os bilionários subsídios ao algodão concedidos pelo governo Bush.
Se Lula ‘toma um trago’, diz adiante o texto, ‘é por razões sociais’. Falso. Razões sociais são aquelas que motivam formas de comportamento público. Lula põe terno e gravata quando vai trabalhar por razões sociais. Mas ‘toma um trago’ por razões pessoais – porque aprecia uma bebida e ponto. O que não faz dele um alcoólatra, se a aprecia com moderação.
As intenções atribuídas ao New York Times em relação a Lula são, numa interpretação caridosa, delirantes. O delírio consiste em afirmar que o jornal está a serviço da Casa Branca, que foi obrigada a ‘conter a sua sanha na Venezuela e em Cuba’. Por isso, fez uma matéria para ‘minar a honra e a autoridade de nosso presidente’. Eis duas supostas relações de causa e efeito que o articulista deve ter achado desnecessário comprovar.
O mesmo vale para ‘o NYT não pode suportar a autoridade moral e política de um retirante nordestino, que saiu da fábrica para presidir o Brasil’. E se a justaposição das passagens significa algo, Lula teria demonstrado essa dupla autoridade quando ‘indagado nos EUA se gostava de Bush, respondeu que gosta mesmo é da Marisa, com quem está casado há trinta anos’.
Razão tem Clóvis Rossi, da Folha, quando lamenta:
‘Como o presidente parece dar ouvidos a essas teorias ridículas e até concordar com elas, fica mais fácil de entender o seu pobre governo. Sua assessoria e ele próprio preferem fantasiar a encarar os fatos.’
Se é que de fantasias se trata. [Fechado às 14h28 de 17/5]