Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Mídia francesa se une contra informações falsas

Em uma era na qual informações falsas são chamadas de “verdades alternativas” e acabam sendo amplamente difundidas pela Web, seja por meio de sites ou pelas redes sociais, a checagem das informações que circulam na rede tem se tornado cada vez mais uma ferramenta necessária para garantir a coerência e a veracidade dos muitos conteúdos presentes na Internet. Nesse sentido, inciativas de fact-checking têm sido desenvolvidas em diversos países, revelando o grande número de “verdades alternativas” que são compartilhadas diariamente na Web. No caso da eleição presidencial francesa, que termina no próximo dia 7 em meio a um cenário que excluiu do segundo turno os Republicanos e o Partido Socialista, o fact-checking tem se revelado uma ferramenta essencial diante das muitas informações falsas que têm circulado no ambiente virtual francês.

Enquanto no Brasil agências como a Lupa realizam o trabalho de fact-checking sobre temas nacionais, ou nos Estados Unidos, onde o projeto FactCheck.org promove a checagem de informações disseminadas na rede americana, uma joint venture de 37 veículos da imprensa francesa lançou em 24 de fevereiro o projeto CrossCheck, voltado à investigação e à revelação de informações falsas que podem exercer uma influência na eleição francesa. Por meio de uma aliança entre veículos como os jornais Le Monde e Libération, canais de TV aberta da rede France Télévisions, sites de notícia e entidades do segmento acadêmico, o projeto CrossCheck conta ainda com a contribuição da organização FirstDraftNews e do Google Labs, reunindo ao todo cerca de 250 jornalistas dos diversos veículos que integram o projeto.

Para identificar os diversos rumores que circulam na Web sobre a eleição presidencial francesa, a plataforma utiliza a ferramenta GoogleTrends, que revela as pesquisas mais frequentes relacionadas à eleição, além de contribuições diretas dos internautas ao CrossCheck, que sugerem boatos a serem investigados pela equipe da plataforma. Após o processo de verificação de informações, que deve ser validado por ao menos dois veículos que fazem parte do projeto, a checagem é publicada, e as informações são classificadas como falsas, verdadeiras ou impossíveis de serem apuradas.

Para se ter uma ideia da extensão das informações falsas na Web francesa, que não se espalham somente em forma de texto, o projeto CrossCheck identificou no Facebook mais de 200.000 compartilhamentos de uma única informação falsa: um vídeo sobre uma suposta agressão de um estrangeiro a duas francesas em um hospital, que a verificação do CrossCheck revelou tratar-se de uma cena registrada em Novgorod, na Rússia. No âmbito da eleição presidencial francesa, este vídeo serviu como mais uma “prova” da dita ameaça estrangeira ao país.

O compartilhamento de informações falsas dos candidatos ocorreu de forma ampla durante o primeiro turno da eleição presidencial francesa. O candidato de esquerda Jean-Luc Mélenchon, por exemplo, foi “flagrado” utilizando um relógio Rolex de quase 18.000 Euros. Tratava-se de uma montagem que viralizou no Twitter, pois o candidato estava na realidade portando um relógio da marca Seiko de 2.300 Euros.

Já o candidato Emmanuel Macron, atualmente na disputa do segundo turno, foi vítima de uma informação falsa muito mais séria. O “site de notícias” lesoir.info informou que 30% de sua campanha estaria sendo financiada pelo governo da Arábia Saudita. Nas mãos da Frente Nacional, partido de extrema-direita francês, o “fato” circulou rapidamente pela Web, seja em sites ligados ao grupo político de Marine Le Pen, seja em perfis no Twitter de políticos franceses, como o de Marion Maréchal-Le Pen, sobrinha de Marine e deputada francesa. Novamente, se tratava de mais uma informação falsa. Além de plagiar o nome do jornal belga Le Soir para conferir credibilidade à sua informação – cujo domínio real é lesoit.br – o site ainda citou como referência a agência France Presse, que afirmou nunca ter publicado tal informação.

Entre as mais de 60 informações falsas apuradas pelo CrossCheck entre 28 de fevereiro e o início de maio, o principal foco é o centrista Emmanuel Macron, líder das intenções de voto e alvo direto da Frente Nacional. Juntos, os boatos envolvendo o candidato do Em Marcha! foram compartilhados quase mais de 190.000 vezes somente no Facebook. Além de ataques aos candidatos, a lista de “verdades alternativas” publicada pelo site CrossCheck reúne ainda informações que beiram o absurdo, como a intenção do Ministério da Educação de abolir a filosofia de parte do currículo escolar, a suposta – e irreal – proibição do governo francês de serem exibidos cartazes de Marine Le Pen em locais de votação e uma dita celebração de muçulmanos em Londres em razão do ataque terrorista na Champs-Elysées no final de abril. Na realidade, o vídeo fora gravado em junho de 2009 em razão da vitória em uma competição esportiva.

Somente no debate do segundo turno ocorrido na última quarta-feira (3), um levantamento do Le Monde apurou sete informações incorretas ou falsas, sendo quatro dados apontados por Marine Le Pen que foram desmentidos pelo jornal, além de uma informação imprecisa. No lado de Macron, o Le Monde identificou duas informações imprecisas. Desde o início da campanha, as 15 informações falsas mais espalhadas no Facebook somam mais de 800.000 compartilhamentos. Entre os temas do topo da lista, estão dados inverídicos sobre imigração, segurança e envolvendo o candidato Emmanuel Macron.

Seria ingenuidade acreditar que os assuntos que mais geram informações falsas sobre a eleição francesa são, coincidentemente, as mesmas temáticas foco do discurso de Marine Le Pen. Seja em diversos sites ou em páginas do Facebook, o fato é que as informações falsas têm se revelado uma arma da extrema-direita na tentativa de atrair mais eleitores. Essa tendência foi vista muito recentemente durante a eleição presidencial americana, e no Brasil já é uma prática crescente, ainda que a eleição por aqui ocorra somente no final de 2018.

Diante desse cenário francês, devemos nos preparar para um crescimento ainda maior das “informações alternativas” na Web brasileira e, ao mesmo tempo, estimular cada vez mais práticas que visam checar as muitas mentiras que circulam na Web. No entanto, uma boa parte desses boatos alcança por vezes uma dimensão difícil de ser combatida pela verdade dos fatos, prejudicando não somente candidatos a pleitos eleitorais, porém toda uma sociedade. Toda essa realidade nos leva, portanto, a pensar que o desenvolvimento da Internet por vezes representa mais um perigo à veracidade das informações que uma efetiva democratização do conhecimento.

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Saulo de Assis é jornalista e mestrando em Ciências da Informação e Comunicação pela Universidade Bordeaux Montaigne.