Um olhar mais detido sobre o cinema feito na América Latina traz logo uma constatação deprimente: é difícil, penoso realizar filmes em culturas pobres de recursos materiais e sobretudo devoradas pelos produtos das gigantes multinacionais do ramo. Cineastas hipotecam a casa, vendem o carro, penduram ‘papagaios’ em bancos, vivem em busca permanente de patrocínios, às vezes não têm nem mesmo dinheiro para terminar o filme. O Brasil não é exceção nesse triste panorama. Portanto, sobreviventes e resistentes, de qualquer idade, são dignos de respeito e atenção. Despertam porém a pergunta inevitável: por que insistem ainda?
Responde um dos mais paulistanos cineastas brasileiros, Rodolfo Nanni, na batalha há 50 anos:
‘Faço cinema. Nunca desejei ser um colecionador de sonhos. Por isso, quero realizar concretamente os projetos possíveis. (…) Teimo em ser otimista, em acreditar, em construir. Tenho mais de um projeto, mais de uma história, em estado latente. O tempo não conta, não me interessa. É preciso manter a fagulha acesa.’
Um desses projetos é um filme sobre a vida da pintora Tarsila do Amaral, para o qual Nanni procura financiamento há muito tempo, num paciente e extenuante processo chamado ‘captação de recursos’, decerto familiar a todos os que querem fazer cinema no Brasil. Pode ser junto ao governo ou a iniciativa privada, a luta – marchas e contramarchas, esperas, indefinições – não é muito diferente.
Sobre esse filme que não sai do papel e os dois únicos longas-metragens que dirigiu – o histórico filme infantil O Saci, de 1953, e Cordélia, Cordélia, de 1971 – Nanni fala, com franqueza e serenidade, num livrinho carinhoso e revelador , coordenado e editado com competência pela jornalista Neusa Barbosa.
Sessão de cinema
Narrado na primeira pessoa com base nas entrevistas com o diretor, o livro mostra uma rica e produtiva trajetória, apesar de todas as enormes, às vezes inacreditáveis dificuldades e obstáculos para filmar. Entre O Saci e Cordélia, Cordélia, por exemplo, ele precisou esperar dezoito anos, ganhando a vida como relações públicas, professor de cinema, documentarista, artista de teatro, produtor de espetáculos musicais e de música erudita (CDs e CDlivros). Contudo, jamais esmoreceu e muito menos derramou-se em lamúrias na imprensa.
Elegante até na hora de criticar desafetos ou invejosos, Nanni, rigoroso autocrítico, corrige o que dele disse alguém, definindo-o como um ‘cineasta bissexto’:
‘Fui até menos do que bissexto, porque grande parte dos filmes que pretendi fazer não passaram de sonhos’.
Sonhos para os quais Nanni preparou-se com esmero e aproveitando as boas condições econômicas de seus pais, Enrico e Teresa, imigrantes italianos que criaram os quatro filhos homens num bucólico casarão da rua Oscar Freire, entre a rua Arthur de Azevedo e a avenida Rebouças. Nesse solar o menino conviveu com grandes figuras da intelectualidade paulistana – os modernistas Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Menotti Del Picchia, que visitavam o primo de Nanni, o escultor Victor Brecheret, também morador da casa.
‘Tive uma infância não de menino rico mas com razoável conforto. Tenho alguns amigos artistas que chegaram a passar fome. Eu nunca passei esse drama’.
A pintura, ele confessa, foi sua primeira vocação, mas o cinema sempre iluminou as tardes de domingo do garoto. O pai levava os filhos na sessão das 6 ou das 8 no hoje extinto Cinema Paulista, na rua Augusta, esquina com a Oscar Freire. Era uma curta caminhada da casa ao cinema.
‘Freqüentei também o luxuoso Rosário. Ficava no prédio Martinelli, era todo de mármore, as poltronas e as paredes forradas de veludo vermelho’.
Cinema apesar de tudo
Depois de estudar pintura com Anita Malfatti e Cândido Portinari, Nanni foi aprimorar seus conhecimentos de artes plásticas na França, mas acabou na famosa Escola de Cinema IDEHC, em Paris, onde flertou com as idéias comunistas, conheceu mais gente importante das artes e da cultura, leu tudo, viu todos os filmes da época, mas, devido ao clima político repressivo dos anos 1950 (a França estava em guerra na Indochina), preocupado com sua própria segurança, voltou ao Brasil.
‘Adeus aos museus e exposições, à Cinemateca, aos livreiros das margens do Sena, Saint German, Saint Michel, às endívias e alcachofras bretãs, à Torre Eiffel vista de longe, às baguettes, às Tuilleries. (…) Não ouvíamos mais os poemas de Neruda recitados pela sua voz rouca e desperada’.
Ele voltava com a experiência de dois anos numa escola européia de prestigio, só que não dispunha de recursos para filmar, mas o convite veio de repente: topava dirigir um filme baseado na obra infantil de Monteiro Lobato? Meio espantado, topou e…
‘…logo começou o processo de levantar dinheiro. (…) Freqüentemente éramos obrigados a recorrer a nossa criatividade. O fotógrafo Ruy Santos fotografou árvores e mandou fazer grandes ampliações, que ficavam do lado de fora do pomar da casa do Sitio do Picapau Amarelo’.
Estreado no histórico Festival de Cinema de São Paulo, em 1954, O Saci, o primeiro filme brasileiro do gênero, faria boa carreira em festivais internacionais, antes mesmo do célebre Cangaceiro, de Lima Barreto, este com todos os recursos técnicos e artísticos dos estúdios da Vera Cruz.. No aniversário dos 50 anos dessa experiência de juventude, por isso mesmo intensa e sonhadora, Nanni reuniu-se com o elenco do filme no MIS, em São Paulo, num encontro cheio de saudades e emoção.
Para o futuro
Seu segundo longa metragem, 18 anos depois, Cordélia, Cordélia, mesmo produzido em melhores condições, teria uma trajetória tumultuada, sobretudo um drástico corte de verbas por parte do governo, obrigando Nanni a buscar recursos na área privada.
‘Cordélia, Cordélia teve uma carreira razoável , foi exibido em todo o país. Não ganhei dinheiro, como sempre. Foi um filme bem-feito, mas não diria ser o filme da minha vida’.
O então respeitado crítico de cinema carioca, Ely Azeredo, fez uma resenha favorável ao filme, só que se concentrando no trabalho da atriz Lilian Lemmertz.
Ainda nos anos 1970, Rodolfo Nanni encontraria, de certo modo, uma oportuna compensação profissional e artística pelos problemas com seus dois filmes de longa-metragem. Ele se converteria num documentarista de mão cheia, sendo que quatro de seus filmes são sobre a cidade de São Paulo, todos muito bem realizados, sobretudo o Bela Vista (1978).
Planos para o futuro? Responde Rodolfo Nanni:
‘Estou desenvolvendo meus projetos de filmes, com a consciência da realidade que atravessamos. (…) Confesso que tudo o que pude realizar, em diversas áreas, gostei de tê-lo feito e acredito ter contribuído, de alguma forma, para a afirmação da nossa cultura’.
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Jornalista e escritor brasileiro radicado no México