Thursday, 19 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Sem preconceitos, mas cada um no seu lugar

Procure nos meios de comunicação, caro colega: este colunista fez a pesquisa, e não encontrou nada. Afinal de contas, estamos num país onde não existe qualquer tipo de preconceito! Aula de religião, por exemplo, é sempre ecumênica. Logo, este caso que vem a seguir simplesmente não existe, não é mesmo? Talvez por isso ninguém tenha se interessado em fazer a reportagem sobre ele.


Pois há um jovem que estuda em Aimorés (MG), numa escola pública. Todos os dias, antes das aulas, há um convite – um convite irrecusável – para que os alunos participem de um grupo de oração cristã. O aluno, ateu, recebeu ordens de tirar o boné durante a oração. Recusou. Foi posto para fora da classe e encaminhado à direção. Acabaram também chamando sua mãe, e a informaram de que ficar com o boné na cabeça é proibido pelas normas da escola. Até pode ser; mas o uso era tolerado, e outros estudantes usavam boné. A direção informou então que os outros alunos não atrapalhavam, mas ele atrapalhava – talvez por ser ateu. Enfim, o adolescente está com cartão amarelo. O próximo é o vermelho.


Quando se fala em educação religiosa obrigatória, este colunista se lembra da sua escola primária estadual. Único judeu da classe, ou tomava aula de catolicismo ou ia para o pátio, onde ficava sozinho, já que todos os demais colegas estavam na aula. Discriminação, claro; mas na época não se falava nisso. Enfim, hoje se fala – menos nos meios de comunicação, que ignoram solenemente o caso do rapaz de Aimorés. Excetuando-se a crença em Deus, em que difere dos colegas? Por que os outros podem manter a cabeça coberta e ele não? Aliás, se a oração fosse mesmo ecumênica, não poderia haver normas para cobrir ou não a cabeça: muçulmanos e judeus rezam de cabeça coberta, cristãos de cabeça descoberta (menos os dignitários, que cobrem a cabeça).


Alô, pauteiros! Não é uma bela história? E não se preocupem com política: o governador Aécio Neves certamente não tomou nenhuma iniciativa baseada em preconceito religioso, e será o primeiro a reagir, corrigindo o problema, quando o caso for divulgado.


 


Preconceito estético


O príncipe Charles visitou o Brasil em companhia da esposa, Camilla Parker. E de que se falou? Da aparência física de Camilla, ‘n’ vezes comparada à falecida esposa de Charles, Diana – mais bonita, sem dúvida, e que era muito mais jovem. O príncipe Charles não chega a ser nenhum Rodrigo Santoro, e não o era nem quando saiu da adolescência, mas de sua aparência ninguém fala nada. Homem pode ser feio (e, completa este colunista, ainda bem); mulher, não.


Aliás, houve uma festa em homenagem a Monica, esposa do governador paulista José Serra. E de que se falou? Da roupa que ela usava. Ninguém comentou o terno muito bem-cortado, de caimento impecável, do promotor da homenagem, João Dória Jr., nem o antibronzeado permanente e as olheiras do governador Serra. Mas homem pode, mulher não. Divulgou-se até que o vestido da homenageada era emprestado (pertencia à filha). Só esqueceram de falar dos óculos de farmácia que Monica Serra usa o tempo todo, e que sempre é lembrado nas reportagens em que ela é personagem. Terão cansado do assunto?


 


As picuinhas


Por falar em governador José Serra, a reportagem continua macia, macia: como ele não quer falar sobre a venda de cargos na polícia (diz que quem fala é só o secretário da Segurança, como se não fosse ele o chefe do secretário da Segurança), ninguém o procura para entrevistas sobre o tema. Mas, para picuinhas em geral, há espaço:


1. A picuinha Ronaldo – O fato é que, por enquanto, Ronaldo Fenômeno é a grande estrela do futebol paulista. Em três jogos, em nenhum dos quais atuou 90 minutos, fez dois gols, ambos decisivos, e criou jogadas que há muito tempo não se viam em nossos campos.


Mas a grande matéria da imprensa é que ele finalmente está fazendo com que entre dinheiro no caixa do Corinthians. E qual é o leitor que está interessado em discutir as contas do seu clube na editoria de Esportes? Já torci por Gilmar, Cláudio, Baltazar, o grande Luizinho, Rivelino, Dino Sani (na fase áurea de sua carreira, no Corinthians), acompanhei Idário, o Sangue Azul, admirei Zé Maria, Sócrates, Vladimir, Basílio, o Pé de Anjo, e nunca quis saber quanto ganhavam.


Isso é assunto para guarda-livros, para administradores, não para torcedores, não para o torcedor que acompanha futebol pela imprensa. A propósito, ouvimos também eruditas explicações sobre as falhas dos jogadores dos times adversários que permitiram a Ronaldo jogar bem. Desculpem os caros colegas, mas por que é que com Abuda e Afonso, aquele que o Dunga inventou, os adversários não falham?


2. A picuinha do leite – Há pouco mais de um ano, as empresas que forneciam leite em pó para as escolas da prefeitura de São Paulo decidiram suspender o fornecimento, exigindo fortes reajustes. A prefeitura decidiu topar a briga: procurou uma das maiores produtoras mundiais de alimentos, a Nestlé, e passou a fornecer leite Ninho aos alunos de escolas municipais. O contrato, conforme a lei, previa um quilo de leite em pó por aluno; como a situação era de emergência, a Nestlé, pelo mesmo preço, forneceu três latas de 400 g, enquanto adaptava seu equipamento para trabalhar com latas de 1 kg.


Agora, que a situação voltou ao normal, os veículos de comunicação acusam a prefeitura de reduzir a quantidade de leite oferecida aos alunos. O que aconteceu foi o contrário: durante um bom tempo, a quantidade foi aumentada. E, nas reportagens, cita-se uma dona de casa desesperada porque o outro filho não estuda em escola municipal, não recebe leite, e a casa tem apenas o leite trazido pelo outro filho. Em vez de culpar a outra escola por não fornecer leite, culpa-se a prefeitura paulistana por não fornecer leite que cubra a falha dos outros!


Essas picuinhas lembram a história de Lula, nas Caravanas da Cidadania. Um dia, conversando com repórteres, Lula disse que ‘esse filho da puta do Itamar Franco’ estava desperdiçando uma grande chance de mudar o país. Era óbvio que não havia insulto; mas a imprensa preferiu acusar Lula de xingar a mãe de Itamar. O português é uma língua cheia de nuances: FDP pode ser insulto, pode ser protesto (‘esse FDP fica andando devagar e bloqueando o trânsito’) e pode ser elogio (‘esse FDP do Ronaldo não perde chance de fazer gol!’) Preferiu-se a picuinha. E uma viagem interessantíssima, que poderia mostrar aos grandes centros urbanos como vivem os grotões do Brasil, acabou sendo desperdiçada em discussões sobre um insulto que não existiu.


 


Jornalismo explícito


Regina Helena Paiva Ramos, jornalista de primeira linha, hoje aposentada, lembra que o episódio da microfonada no rosto de Ronaldo Fenômeno não é novidade: costuma acontecer por aqui, sim. Até com Jean-Paul Sartre, o filósofo francês que, na época em que visitou o Brasil, estava no auge da popularidade:




‘Entrevista com Sartre, num teatrinho da praça Júlio Mesquita, em São Paulo. Acho que se chamava teatro Natal. Entrevista em francês, com intérpretes, naturalmente, mas a maioria dos jornalistas presentes – críticos de teatro – falava francês. Sartre tinha chegado naquele dia, há poucas horas. Na saída dele – jornalistas atrás – desembarca de um carro de reportagem um repórter radiofônico famoso, microfone na mão. Aproxima-se correndo e quer falar com Sartre. Este olha espantado mas não para. Continua em direção ao carro. Aí o repórter dá uma gravata no Sartre, chega o microfone quase no nariz dele e pergunta em português: `Mister Sartre, o que o sr. achou de São Paulo?´ E Sartre, mal humorado (era muito mal humorado!): `Merde!´’


 


O caso do iraquiano


O jornalista iraquiano Muntader al Zaidi, que atirou um par de sapatos no presidente americano George Bush, foi condenado a três anos de prisão. É injusto: nenhum dos sapatos atingiu o alvo, se atingisse teria provocado no máximo um arranhão, daqueles que nem band-aid exigem, e ele não portava qualquer outra arma. Seu objetivo era protestar, não ferir.


O curioso, entretanto, é que a notícia de agora esquece os fatos da época: toda a imprensa disse que Muntader al Zaidi tinha sido brutalmente torturado, que lhe haviam quebrado costelas, que seu rosto estava deformado. Não faz tanto tempo assim (cerca de três meses). Se havia sinais de tortura, por que isso não é mencionado no noticiário? Se não havia sinais de tortura, por que isso não é mencionado no noticiário?


 


O grande Myltainho


Desde o início da década de 1960, já lá se vão quase 50 anos, Mylton Severiano da Silva é um nome forte no jornalismo: conhece a profissão, conhece como poucos nosso idioma, trabalhou em algumas das principais publicações do país. Este colunista provavelmente não concorda com nenhuma das idéias do Myltainho, radicalíssimas, mas sabe reconhecê-lo como um grande jornalista.


Pena que a direção comercial da revista Caros Amigos, da qual Myltainho foi um dos fundadores, um dos pilares e diretor de Redação desde a morte de Sérgio de Souza, não soubesse que um profissional altamente qualificado pode até ser difícil de tratar, mas sempre será um profissional altamente qualificado. Gente, digamos, mais flexível, pode ser mais fácil de tratar, mas a alta qualificação depende de talento, estudo e tempo. E Myltainho acabou deixando a revista.


Vai fazer falta.


 


A face oculta


Não, não pode ser: uma história tão boa não pode ter passado despercebida pelos meios de comunicação. Mas não consegui encontrá-la, não. Então, vá lá:


Nas vésperas de um grande evento turfístico, o 25º Grande Prêmio Associação Latino-Americana de Jockey Clubes e Hipódromos – que o presidente do Jockey Club paulistano, Márcio Toledo, definiu como ‘tão importante para São Paulo como será a Copa de 2014 para o Brasil’ – o Jockey teve suas contas correntes bloqueadas, para garantir o pagamento de dívidas para com a prefeitura.


Deve ser por causa dessa situação que se levantou a hipótese de desapropriar e transformar o Jockey em parque público municipal.


 


Como…


De um grande jornal:


** ‘Indústria já vê PIB zero em 2009’


Epa! Será preciso destruir tudo o que foi feito no Brasil até hoje, para que o Produto Interno Bruto caia a zero? Talvez seja mais fácil imaginar que o jornal tenha pensado em referir-se a ‘crescimento zero do PIB’.


 


…é…


** ‘Mãe, que diz ter sido agredida, recebe alta’


A notícia se refere aos fatos imediatamente anteriores ao sequestro do avião em que o marido da referida senhora mergulhou no estacionamento de um shopping center. O ‘diz ter sido agredida’ significa, na verdade, que ela foi espancada com um extintor de incêndio e atirada fora do carro em movimento. É um milagre que tenha sobrevivido.


E o avião, teria sido jogado? E o marido enlouquecido, supostamente teria morrido?


 


…mesmo?


** ‘Inglês é condenado a dois anos por fazer sexo com caixa de correio’


Esta notícia é curiosa: como se faz sexo com uma caixa de correio?


 


E eu com isso?


O noticiário internacional, ao contrário do que pode parecer, não precisa ser deprimente, nem abrigar apenas fatos sangrentos e declarações belicosas. Pode ser mais suave:


** ‘Claudia Raia e Edson Celulari foram vistos no aeroporto de Paris’


** ‘Maias do México venderão chiclete orgânico na Europa’


** ‘Compromisso impede Xuxa de ir a festa de Hebe Camargo na Disney’


Mas também pode trazer notícias da maior importância, sem as quais, sem dúvida, não poderíamos dormir à noite:


** ‘Juliana Paes já dançou para o marido’


** ‘Chuva leva cágado para o meio da rua na Grande SP’


** ‘Carolina Ferraz sorri para fotógrafo’


** ‘Americana se machuca ao tentar aumentar potência do vibrador’


E há até notícias policiais curiosas:


** ‘Homem condenado por sair nu de casa e desafiar vizinhos para luta de caratê’


 


O grande título


A concorrência é grande: começa com um daqueles títulos fantásticos, de um grande portal de Internet, que não cabiam na linha e foram enfiados na pancada. O que entrou, entrou.


** ‘Ford e sindicato americano pactuam convênio para cortar cu’


Isso, em linguagem empresarial, é o que se chama ‘cortar na própria carne’.


** ‘Crise pode diminuir gases poluentes’


Claro: menos veículos, menos combustíveis, menos gases poluentes. Não seja malicioso, caro colega.


** ‘Estoques de adubo caem no Brasil após liquidações-especialistas’


Liquidações-especialistas – alguém, com certeza, saberá do que é que se trata.


São todos bons títulos. Mas o melhor, sem dúvida, é o que se segue:


** ‘Ovos grandes causam dor e estresse para galinhas, diz associação’


Há muitos e muitos anos, uma galinha botou um ovo de 160 gramas, ou coisa parecida. O grande Renato Pompeu fez um excelente título, para uma notinha pequena: ‘…e a galinha penou’. O secretário de Redação parou a rodagem do jornal, só para trocar o título do Renatão.

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Jornalista, diretor da Brickmann&Associados