Tom Jobim, maestro soberano, já dizia: Chico Buarque é craque; tem seu lugar assegurado entre os maiores na história da canção e também da literatura brasileira. O que se busca aqui é observar um outro campo de atividade em que o artista vem se destacando: a forma de atuação nas redes sociais e na relação com o jornalismo. As estratégias de divulgação do novo disco “Caravana” trazem novos dados ao debate que acrescentam algo em relação ao texto publicado recentemente, aqui no Observatório da Imprensa, sobre o novo trabalho dos Tribalistas.
Como tem sido comum nesses tempos, a divulgação do disco se deu por “aperitivos” disponibilizados nas redes: trechos de algumas canções ambientadas no estúdio onde foram gravadas. A primeira a ser divulgada “Tua Cantiga”, parceria com Cristóvão Bastos, motivou reações de segmentos feministas que viram na letra traços machistas. “Será que é machismo um homem largar a família para ficar com a amante? Pelo contrário, machismo é ficar com a família e a amante” publicou o compositor em sua página no facebook acrescentando, com uma ironia fina que parece ter saltado das páginas do pasquim, ter se tratado de conversa entreouvida na fila de um supermercado.
O passo seguinte foi a estratégia de diálogo com os jornalistas. Em vez da coletiva, a assessoria do compositor enviou para a imprensa link sigiloso para audição do álbum e texto de 14 mil caracteres do jornalista Hugo Sukman com referências literárias e musicais do novo disco contextualizando alguns aspectos de criação que dificilmente seriam identificados pela crítica. Constituem aquilo que é chamado na teoria linguística de interdiscurso: algo que está na constituição do objeto criado- no caso as canções do disco- mas não aparece de forma explícita, se mostra nas entrelinhas. A boa crítica busca desvendar o interdiscurso mas o resultado é, quase sempre, hipotético. No Zero Hora, o Professor de Literatura da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Guto Leite, por exemplo, demonstrou uma relação da canção “Tua Cantiga” com as clássicas histórias infantis como Chapeuzinho Vermelho, Bela Adormecida ou A Rainha Má – referências também sinalizadas no texto de Sukman — para falar sobre a uma certa consciência elegante do artista com a passagem do tempo. “Ouvir uma canção inédita de Chico Buarque é lembrar do quanto pode ser complexa uma canção. Trata-se de objeto de arte e aqui isso significa uma forma que recusa leituras rápidas ou imediatas”, escreveu o professor.
Ao explicitar o interdiscurso, Chico produz uma narrativa expandida das canções, ampliadas com o texto sobre suas inspirações. O texto de divulgação indica duas referências da canção que dá título ao disco “Caravana”: uma ligada à música e a outra à literatura – os dois polos criativos da trajetória de Chico: São elas a música “Caravan” de Duke Ellington e o romance “O Estrangeiro” de Albert Camus, definido por Roland Barthes como o grau zero da escritura por sua forma minimalista de descrição dos acontecimentos. Há uma espécie de contraste entre a exuberância do tema de Caravan e a narrativa direta de Camus presente, como interdiscurso, na letra da canção: “Sol/ a culpa deve ser do sol/que bate na moleira/ o sol”. As caravanas periféricas invadindo as praias cariocas ecoam presídios lotados e navios negreiros na melodia de inspiração jazzística. Jogada de craque: a canção e a explicitação de suas referências.
Mas não é só. A própria página de Chico no Facebook compartilhou as críticas dos principais jornais do país: do Correio Braziliense ao Estadão, fossem elas positivas ou não. E uma das canções do novo álbum “Desaforos”, o compositor fala das intolerâncias nos ambientes virtuais e espaços públicos. O conjunto das estratégias para divulgar o trabalho na rede aparentemente deu resultado. As canções foram ouvidas, comentadas, compartilhadas e criticadas. O lançamento de “Caravana” contribuiu com sua parcela para o esforço de restaurar um ambiente dialógico no país – fundamental para reagirmos à crise ética, econômica e de linguagem –, algo que se dá na relação entre arte e vida. A caravana do artista atravessa as bolhas algorítmicas monológicas e nos conecta com a expansão dos universos narrativos: entre Albert Camus e Chapeuzinho Vermelho, o jazz e o lundu encontramos o velho/novo Chico Buarque.