Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Morreu Harry Dean Stanton – Parecia Lucky Luke

Harry Dean Stanton, tinha 90 anos, participou de mais de 200 filmes e, quando mais novo foi ator principal em Paris, Texas de Wim Wenders. Foto: Michael Buckner Getty Images Entertainment

Quem acompanhou meus textos sobre o último Festival de Locarno, talvez se lembre de que meu filme preferido, ignorado pelo fraco júri, era Lucky, do filho de David Lynch, John Carrol Lynch, e  meu preferido para o Leopardo de Melhor ator era Harry Dean Stanton.

Como escrevi, Dean Stanton estava com um pé na cova, tinha 90 anos, participou de mais de 200 filmes e, quando mais novo foi ator principal em Paris, Texas de Wim Wenders.

Lucky, ateu empedernido, fumante inveterado, não tinha medo da morte. Morreu em Los Angeles com 91 anos, lúcido, crítico, irônico. A sua não premiação em Locarno foi a maior asneira do júri – a crítica era quase unânime no Leopardo de Ouro para Lucky com Dean Stanton melhor ator.

Se Lucky passar no Brasil não percam! Segue abaixo o texto escrito logo depois da exibição do filme Lucky, em agosto, no Festival Internacional de Cinema de Locarno.

Lucky Luke, velho mas não caquético

Um dos mais aplaudidos filmes, na competição internacional do Festival de Locarno, foi Lucky, filme dirigido por John Carroll Lynch, filho de David Lynch.

Quem diria? Lucky Luke o cowboy solitário que fumava um cigarro atrás do outro, antes de deixar de fumar nos desenhos franceses e passar a morder no lugar um ramo de trigo, tem noventa anos e vive no Arizona. Com uma diferença, nos EUA, pátria do Marlboro, Lucky Luke não conseguiu se libertar do tabaco e fuma, mais de um pacote, apesar da insistência de seus amigos preocupados com sua saúde. Isso é o que mostra, sem precisar alardear, o filme Lucky, um dos bons na competição.

Se o filho de David Lynch, o também cineasta e ator John Carroll Lynch, tivesse encomendado a alguma agência procurar num casting, um sósia de Lucky Luke não teria achado mais perfeito que Harry Dean Stanton, um idoso, como se diz, amigo do roteirista que, antes tinha pensado até em fazer um documentário sobre Stanton, cujo humor, ironia e lucidez impressionam.

Mas como se estivesse na pele de Lucky Luke, o velho Stanton, saiu-se ainda melhor e ficou sob medida. Impecável.

A um pé da cova, como também se costuma dizer, Stanton, sem Parkinson e sem Alzheimer, vive uma dimensão própria, sem qualquer referência ao seu passado no mundo do cinema, uma personagem saborosa, irreverente, de ateu empedernido, de crítico dos agentes de seguros de vida e de tudo o mais, tão típicos do mundo norte-americano.

Um traço une esse sósia de Lucky Luke aos demais idosos – a mania das palavras cruzadas e do número de letras para preencher as casas horizontais e verticais.

Aposentadoria

No contraponto a esse Lucky Luke longevo, um animal capaz de viver bem mais, até 200 anos, com a vantagem de não cair nas novas leis de previdência – uma tartaruga com um nome talvez simbólico Presidente Roosevelt. É justamente David Lynch que, no filme, vive, como ator, a preocupação do proprietário de uma velha tartaruga, que fugiu, nomeada junto a um advogado como sua herdeira, quando morrer.

Lucky foi uma pérola rara nesse Festival de Locarno, que nos fez sorrir, sem ter humor negro, mesmo se sabemos que Stanton, apesar de sua ginástica light toda manhã e de sua aparente saúde confirmada pelo médico, está a um passo do nada, com um pé na cova e talvez nem sobreviva ao sucesso do filme de John Carroll Lynch.

O cinema é cotado como entretenimento mas, com frequência, e uma recente Palma de Ouro confirmou, dirige suas câmeras para a visão da realidade do efêmero da vida, a velhice, que alguns conseguem controlar embora sem esconder seu efeito devastador, como o irônico Lucky. Porém, uma grande parte, embora se fale muito em maior esperança de vida, provavelmente para aumentar a idade da aposentadoria, vive geralmente doente e impotente, já meio-deitada no caixão.

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Rui Martins é jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura. Criador do primeiro movimento internacional dos emigrantes, Brasileirinhos Apátridas, que levou à recuperação da nacionalidade brasileira nata dos filhos dos emigrantes com a Emenda Constitucional 54/07. Escreveu Dinheiro Sujo da Corrupção, sobre as contas suíças de Maluf, e o primeiro livro sobre Roberto Carlos, A Rebelião Romântica da Jovem Guarda, em 1966. Vive na Suíça, correspondente do Expresso de Lisboa, Correio do Brasil, e RFI.