Sunday, 17 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

A violação ética do direito de resposta

Em mais um desdobramento do ‘caso ditabranda’, os professores Maria Victoria Benevides e Fabio Konder Comparato requereram à Folha de S.Paulo, através de seus advogados, direito de resposta a renovadas acusações do diretor de redação Otavio Frias Filho, proferidas em 8 de março. Na ocasião, em resposta ao protesto público contra o jornal organizado pelo Movimento dos Sem Mídia, a Folha retratou-se, não sem dubiedade, do emprego do termo ‘ditabranda’ para referir-se à ditadura militar brasileira, mas, no mesmo texto, o diretor de Redação voltou a acusar os intelectuais supracitados, dessa feita de ‘democratas de fachada’ por alegadamente não repudiarem ‘os métodos das ditaduras de esquerda com as quais simpatizam’.

A afirmação mostrou-se falsa, pois entre os vários textos e declarações que a contradizem inclui-se correspondência publicada pela própria Folha de S.Paulo, em 2004, em que Comparato critica o regime cubano, como demonstrou na quarta-feira (11/3), alertado por um leitor, o jornalista Rodrigo Vianna. Nem mesmo tal evidência, reconhecida quatro dias depois como ‘erro factual’ pelo ombudsman do jornal, Carlos Eduardo Lins da Silva, fez Frias Filho dignar-se a se retratar com o acadêmico.

‘Solidariedade envergonhada’

Na resposta dos professores, publicada em 14/03, eles põem sob suspeita o respeito da Folha pela ética do jornalismo durante o episódio, afirmando que ‘sempre sustentamos, sem precisar receber lições de ninguém, que as vítimas de regimes arbitrários, aqui e alhures, merecem igual proteção e respeito, sem desvios ideológicos ou idiossincrasias pessoais’. É lícito questionar se a escolha dos signatários em produzir uma resposta simplesmente reativa aos termos ditados pelas acusações de Frias Filho foi a melhor opção, sobretudo em uma polêmica tão rica em material analítico. Porém, os procedimentos adotados pelo jornal em relação à publicação do direito de resposta foram tão estapafúrdios que questões mais urgentes se impuseram.

De modo surpreendente, logo abaixo do texto dos professores foi publicada uma nota da redação, substancialmente maior (736 caracteres, contra 470 do direito de resposta), saudando como ‘exemplo de transparência editorial’ da própria Folha a retratação dúbia feita anteriormente pelo emprego da palavra ‘ditabranda’ e afirmando que, assim, ‘imaginava-se encerrado o episódio, mas os professores Comparato e Benevides estão empenhados em extrair dele o máximo rendimento possível. As opiniões de ambos sempre foram transmitidas pelo jornal, por meio de numerosos artigos, sem a necessidade de advogados. A `resposta´ acima é publicada com base na Lei 5.250/67, editada pela ditadura militar, a fim de que vítimas de regimes cautelosamente chamados de `arbitrários´ e vagamente situados `alhures´ também se sintam destinatários dessa solidariedade envergonhada’.

Restringindo o debate público

É fato que, ao publicar o exíguo texto do direito de resposta seguido de uma palavrosa nota da redação em que as acusações que o motivaram são reiteradas, de modo ainda mais ferino e insidioso, a Folha não transgride nenhuma lei; viola, porém, de forma flagrante, princípios elementares da ética jornalística e do debate democrático.

Pois quaisquer que fossem os termos da nota do diretor de redação, sua simples publicação, logo abaixo do texto relativo ao direito de resposta, atenta contra a lógica e os preceitos éticos que regem tal instituto, cujo objetivo é dar voz a quem, previamente ofendido pela publicação, não teve o devido espaço para se defender – e não, servir de ocasião para mais um round de um embate entre forças desiguais e no qual o jornal tem sempre a palavra final, como o exemplo em questão demonstra de forma didática.

Mas, como fica claro através de sua leitura, não se limita à violação de tais princípios a nota do diretor de Redação da Folha: além da indulgência risível da auto-congratulação, o texto insiste na tentativa de desmoralização dos dois intelectuais com ofensas e insinuações de uma baixeza inconcebível numa publicação séria, quanto mais em um jornal que se pretende pluralista. Não cabe aqui discutir a insistência do diretor de redação, no texto cifrado que encerra a nota, para que os professores – que em sua resposta, vale frisar, condenam explicitamente regimes autoritários, ‘sem desvios ideológicos’ – citem nominalmente Cuba, e como regime ditatorial de esquerda (só ‘autoritário’, não serve). As implicações políticas da tentativa arbitrária de determinar os termos do debate público, restringindo-o – que também caracterizara as intervenções anteriores de Frias Filho no caso –, já foram tema de texto deste articulista, publicado semana passada neste Observatório.

Constrangimento e ofensas

A acusação de oportunismo contra os dois professores – que estariam, sempre segundo o jornal, tentando tirar proveito máximo do episódio – volta-se, com sentido invertido, contra o acusador: quem parece fornecer o combustível, de forma contraproducente e, portanto, pouco inteligente (pois voltada contra os interesses do jornal), que reinflama e prorroga o episódio é o próprio diretor da Folha, com sua intemperança verbal, e não os professores, que simplesmente estão a fazer valer seus direitos. Tivesse simplesmente publicado a nota relativa ao direito de resposta, o assunto tenderia a ser paulatinamente esquecido; como resposta aos novos impropérios proferidos por Frias Filho, a polêmica se reacende.

Da mesma forma, soa pueril a insinuação embutida na afirmação de que ‘as opiniões de ambos [Benevides e Comparato] sempre foram transmitidas pelo jornal, por meio de numerosos artigos, sem a necessidade de advogados’. Ora, é direito básico de todo cidadão fazer-se valer de meios legais para ressarcir-se de dolo ou prejuízo. Independentemente de colaborações pregressas sobre assuntos outros que os dois tenham publicado na Folha, os acadêmicos, proeminentes em suas áreas, sofreram tentativa de desmoralização pública por parte do jornal, foram duramente atingidos em sua honra – inclusive, como já demonstrado, através de afirmação que se revelou falsa –, e têm todo o direito de buscar ressarcimento da forma que melhor lhes convir, sem ter de passar pelo constrangimento de contatar quem os ofende para solicitar espaço para suas respostas.

Mostras de descontrole

Mais insidiosa é a tentativa de acusar os professores de autoritarismo por recorrerem a uma lei ‘editada pela ditadura militar’. A respeito de tal instrumento legal, a professora de Jornalismo Sylvia Moretzsohn, em comentário neste Observatório da Imprensa, observou que ‘como o jurista Nilo Batista escreveu há mais de 20 anos, a Lei de Imprensa combinava elementos absurdamente antijurídicos com outros profundamente democráticos, entre os quais, justamente, o direito de resposta’. A despeito de tal constatação, a mania de procurar desqualificar o instituto do direito de resposta, internacionalmente reconhecido, associando-o, no Brasil, ao período ditatorial (o mesmo que o jornal considerara brando) é prática usual entre os donos da imprensa.

A insustentabilidade da insinuação de Frias Filho, porém, não se deve somente à sua generalização tão desmedida quanto maniqueísta, nem ao fato de que muitas das leis ainda em vigor no país foram criadas no decorrer dos mais de vinte anos de arbítrio e, goste-se ou não, continuam sendo rotineiramente utilizadas. A análise das razões que desautorizam tal acusação acaba por revelar, na verdade, o alto grau de cinismo que ela embute – pois, como demonstrado pela última vez no início do primeiro mandato do presidente Lula, quem periodicamente impede o país de se livrar de tal entulho do período militar e ter uma lei de imprensa moderna, editada sob os auspícios da democracia, é precisamente a plutocracia midiática à qual Frias Filho pertence, para quem qualquer tentativa de regulamentação da atividade jornalística é autoritária e anti-democrática (‘stalinista’ é o termo acusatório que costumam bradar, não sem histerismo).

Como evidenciam os últimos desdobramentos do caso ‘ditabranda’ – que se prorroga além do recomendável – a Folha de S.Paulo, sob o comando de um diretor de redação que dá mostras de descontrole, parece não se cansar de decepcionar aqueles que, um dia, acreditaram no seu respeito por princípios elementares do debate democrático.

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Jornalista e cineasta, doutorando em Comunicação pela UFF; seu blog