Apagado o fogo das campanhas e feita a contagem dos salvados do ‘incêndio’ eleitoral, resta o balanço da atuação da grande imprensa. Esta é a tarefa que se impõe a toda a intelligentsia do nosso Observatório. Mas, já nas páginas dos jornais, aparecem aqui e ali avaliações que, mesmo curtas, podem revelar-se razoavelmente precisas. É o caso da colunista Teresa Cruvinel:
‘A campanha foi cara, uma das mais caras de todos os tempos. O debate nem sempre elevado, o marketing regeu a cena. Os shows substituíram os comícios, visitadores profissionais, os velhos cabos eleitorais. Até o botox entrou no receituário para candidatos. Tudo isso faz parte da mutação democrática, tudo valerá a pena, enquanto não faltar a liberdade e cada cidadão valer um voto. Viva o voto popular!’ (O Globo, 3/10/2004).
Mas por que ‘razoavelmente’? É que o jornalismo político, por demais agarrado às práticas institucionais da esfera política, oscila repetitivamente em suas pautas entre as barganhas, alianças, articulações e a expectativa do grand finale orquestrado pelo processo eleitoral. Em outras palavras, a Realpolitik ou política tal e qual se realiza na prática reduz-se às negociações e ao rito de calendário (eleições), ambos permeados pela mídia, sem que se divisem quaisquer indícios de avanço no que diz respeito à representação de interesses populares pelos candidatos eleitos.
Excessivamente debruçado sobre as minúcias das grandes e pequenas composições político-partidárias, o jornalista político termina contribuindo para ocultar a decadência do espaço público e da democracia representativa como instâncias de mediação definidoras de modernidade. É discutível, assim, a moção de aplauso puro e simples ao ‘voto popular’.
Por um lado, parece ser hipermoderno, senão ‘pós-moderno’, o advento de um novo modelo político que John Zaller, professor da Universidade da Califórnia, chama de media politics. Esta ‘política midiática’ – em que ‘partidos e grupos de interesse, que antes eram os todo-poderosos da política de massas, são freqüentemente deixados de lado enquanto políticos independentes travam verdadeiras batalhas por discursos, coletivas, propaganda e publicidade, oportunidades de sair em fotos e vários outros eventos de relações públicas’ – estaria ultrapassando o modelo da party politics, ‘política de partidos’, em que os políticos ‘competem como membros de equipes organizadas’.
Esse ultrapasse não implica a substituição de um modelo pelo outro, e sim a prevalência de um novo tipo de controle, em que as estratégias nominalistas, características da tradicional modalização da palavra no espaço público, são intensificadas pelo recurso à imagem, logo, ao marketing e à mídia.
Sem confiança
O resultado disso, muito já se escreveu a respeito, é a transformação do espaço público em espaço publicitário. E no caso de eleições estaduais ou municipais, como as que acabam de acontecer no Brasil, esse espaço de contenda assume as aparências de ‘feira’ pública, tanto no sentido medieval como sertanejo do termo: lugar onde, ao lado de trocas comerciais necessárias, se assiste à exibição das marcas de uma cultura voltada para o ‘tremendismo’, isto, o fabuloso, o estrambótico, o grotesco.
No Rio de Janeiro, a propaganda dos candidatos, seja na televisão ou em panfletos, foi uma clara comprovação dessa hipótese: aqui, o paraplégico pede votos, argumentando com sua impossibilidade física de ‘passar a perna’ nos eleitores; ali, o candidato sobe prodigiosamente nas pesquisas, porque despencou o palanque em que se encontrava; acolá, a candidata garante que ‘ajeitará’ a vida do eleitor se este ‘ajeitar’ a vida dela… E assim por diante.
Talvez, por isso, a maior originalidade do jornalismo neste processo eleitoral tenha sido a seção em que a repórter Daniela Name (O Globo) exibia diariamente o fait-divers das candidaturas. É um filão promissor, mesmo no período pós-eleitoral. Um bom exemplo é a matéria ‘Procura-se Senhorita Suely, eleita vereadora pelo Prona’ (8/10/2004).
Eleita para a Câmara dos Vereadores do Rio com cerca de seis mil votos (mais os 30 mil da legenda), Senhorita Suely é apresentada como uma espécie de personagem romanesco, ‘parte da obra do Dr. Enéas Carneiro, deputado federal e presidente do Prona’. A questão é que a eleita não mora no endereço declarado ao Tribunal Regional Eleitoral, e nenhum dos seus telefones arrolados corresponde ao dito endereço. A matéria do Globo sugere que Suely, nascida na Bahia, possa realmente residir em São Paulo, onde estaria contratada como assessora parlamentar de Enéas. Nenhum dos outros 24 candidatos do Prona no Rio jamais tinha ouvido falar da Senhorita até pouco antes de a campanha começar. A Senhorita evita a imprensa. Um mistério: ninguém, exceto Enéas, claro, sabe quem é Suely.
Esse tipo de matéria sugere ao público leitor (e eleitor) a possibilidade de um acompanhamento jornalístico da vida, do currículo e da atuação de cada um dos recém-eleitos em suas respectivas Câmaras Municipais ou prefeituras. Algo assim como o Currículo Lattes dos professores universitários que, no site do CNPq, é disponibilizado a quem quer que se habilite.
Seria interessante, para o bom futuro da democracia representativa, saber com mais segurança em quem se está votando. Como foi noticiado, mais de um quarto do eleitorado brasileiro preferiu ficar de fora destas eleições. Só no Rio de Janeiro, a soma das abstenções com votos nulos e brancos chega a 21,83%, o equivalente à votação do candidato colocado em segundo lugar na disputa pela prefeitura. É que já se tornou muito forte a suspeita de que o voto não é mais nenhuma ‘voz’ da soberania popular. Não é também nenhuma real manifestação de confiança, já que o real dessa política é a sua simulação estético-midiática. E o pior, jamais poderá tornar-se ‘ex-voto’, como no pagamento de promessas cumpridas, nas igrejas.
******
Jornalista, escritor, professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro