São raros os intelectuais que reúnem três qualidades presentes no trabalho da britânica Claire Wardle: rigor, elegância e pragmatismo. No início de outubro, o Centro Shorenstein da Universidade Harvard decidiu passar a abrigar o First Draft News, uma ONG fundada e dirigida por Wardle desde 2015 para desenvolver diretrizes éticas e fornecer ferramentas para a reportagem jornalística e o compartilhamento de informações no meio digital.
Uma das iniciativas mais bem-sucedidas do First Draft é o CrossCheck, uma coalizão colaborativa reunindo 37 redações francesas e britânicas para verificar ruídos na Web durante a última campanha presidencial francesa. O CrossCheck contou com o patrocínio do Google e também com o apoio financeiro do Facebook para a construção de seu perfil nesta rede social.
Há duas semanas, em parceria com o jornalista iraniano-canadense Hossein Derakshan, Wardle publicou o relatório Information Disorder – Toward an interdisciplinary framework for research and policy making (Desordem da Informação – Rumo a um quadro interdisciplinar de pesquisa e formulação de políticas), encomendado pelo Conselho da Europa.
Além de diagnosticar e apresentar as causas para o fenômeno da produção e disseminação de conteúdo digital enganador e fraudulento, o relatório traz 34 recomendações direcionadas a empresas de tecnologia, governos (inclusive ministérios da educação), veículos de imprensa, sociedade civil e fontes de financiamento.
Palavras-chave das recomendações: mais transparência algorítmica, trabalho colaborativo entre sociedade civil, empresas e governo e o fim dos incentivos financeiros para produtores de desinformação.
No último fim-de-semana, Wardle participou do Festival 3i, um evento sobre inovação e jornalismo promovido por oito redações digitais, como Agência Lupa, Agência Pública, Nexo Jornal e Nova Escola.
Durante duas ocasiões, no Rio e depois em São Paulo, ela falou sobre desinformação para um pequeno público. Foram opiniões expressas sob a Regra de Chatam House, que permite a reprodução do conteúdo com o consentimento da fonte. Abaixo, algumas ideias de Wardle, editadas e publicadas com a devida sua autorização.
Por que não se deve usar a expressão “notícias falsas”:
Trata-se de um termo inadequado para descrever o fenômeno da produção, difusão e consumo de uma gama variada de informações que podem ser comparadas à poluição. Além disso, essa expressão é ambígua e simplista para dar conta tanto da natureza quanto da escala do problema.
Quando falamos de desinformação, estamos nos referindo a conteúdos de natureza muito diversa — desde sátiras e paródias noticiosas [feitas para ridicularizar os poderosos, mas que podem enganar quem as consome], até algo totalmente fabricado, como o que o Papa Francisco teria declarado apoio ao então candidato Donald Trump à presidência dos Estados Unidos.
O que mais me perturba é que em todo o mundo os políticos passaram a usar isso que chamo de “n… f…” como uma arma contra a imprensa e também como uma desculpa para combater a liberdade de expressão [Recentemente, em parceria com Hossein Derakshan, Wardle escreveu um artigo a respeito para o jornal The Guardian.
O ecossistema da desinformação
No início do ano, Wardle publicou o gráfico abaixo para resumir e explicar os sete tipos diferentes de conteúdos noticiosos enganadores. Além de detectar o tipo de manipulação da informação, o diagrama também revela a intenção de quem produz cada tipo de desinformação:
Educação midiática: tarefa urgente com resultados de longo prazo
Mesmo se as escolas começassem hoje a ensinar as crianças sobre desinformação, o resultado só apareceria daqui a 20 anos. Ainda assim, esta é uma tarefa urgente. Além de informá-las sobre as formas como a informação pode ser manipulada, a educação midiática precisa discutir o conceito do viés de confirmação [a tendência humana de se lembrar, interpretar ou pesquisar por informações que confirmem crenças ou hipóteses iniciais]. Compreender o viés de confirmação permitirá às crianças aprender a questionar sobretudo os conteúdos que estimulem respostas emocionais.
Novelas brasileiras precisam combater a desinformação
Existem poucos países no mundo com o nível de audiência que o Brasil tem em termos das telenovelas. E nós sabemos que as novelas são um tema incrível para o ensino de tópicos. Na África, com as telenovelas as pessoas aprenderam sobre temas como técnicas agrícolas e práticas sexuais saudáveis. Acredito que é preciso haver campanhas de educação midiática contadas numa narrativa que possa ter um personagem jornalista ou um professor do ensino básico, alguém que fale dessas questões para uma enorme audiência.
As pessoas precisam aprender que a desinformação é um fenômeno social que pode ser comparado à poluição. E combatê-lo é como varrer as ruas.
CrossCheck: redações francesas se unem para verificar
Ao longo de dez semanas, produzimos 150 matérias sobre desinformação relacionada à campanha eleitoral. Delas 67 foram publicadas, produzindo uma grande audiência, inesperada para as redações. Dois exemplos: o boato de que o candidato Emmanuel Macron estaria usando um ponto eletrônico num debate. Ou que a Arábia Saudita estava financiando a sua campanha.
Como era de se esperar, inicialmente havia um alto nível de desconfiança entre os jornalistas franceses que participaram do CrossCheck. Mas a confiança (entre os jornalistas de 37 redações, como AFP, Le Monde, e Libération aumentou depois que eles passaram três dias em treinamento num castelo francês. O vinho certamente ajudou.
O primeiro desafio foi lidar com a ideia de que num time colaborativo não haveria exclusividade. Todos os participantes, que se comunicavam via [o sistema de mensagens] Slack, teriam acesso a todas as informações levantadas e checadas.
Mas na esteira da eleição do Trump, eles logo perceberam que tanto eles próprios, como jornalistas, como suas organizações, teriam muito mais a ganhar do que a perder com o CrossCheck. À medida que a campanha avançava, eles passaram a compreender que muito da desinformação diz respeito à imagens e que os boatos viajam rapidamente e podem ser muito prejudiciais ao processo democrático.
Além de um time de editores sêniores formado por profissionais dos próprios veículos, o CrossCheck forneceu um time de dez editores que ficaram hospedados nas redações. As principais ferramentas de trabalho eram o Newswhip [capaz de prever o nível e velocidade de dispersão do conteúdo digital] e o Crowdtangle [ferramenta analítica do Facebook]
O contexto da desinformação no Brasil
Publicado originalmente na newsletter do Projeto Credibilidade
Conforme noticiado pelo Estadão em setembro, cerca de 12 milhões de pessoas difundem desinformação de caráter político no Brasil. O levantamento foi feito pelo Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas para o Acesso à Informação (Gpopai) da Universidade de São Paulo (USP).
Esse contingente de 12 milhões representa cerca de 10% da rede de usuários brasileiros do Facebook.
“Se considerada a média de 200 seguidores por usuário, o alcance pode chegar a praticamente toda a população brasileira,” diz o jornal.
A matéria acrescenta que as chamadas notícias falsas podem ganhar protagonismo nas eleições de 2018, com potencial de alcance maior do que as informações de fontes reconhecidas como confiáveis.
“No atual momento, a polarização ideológica coincidiu com o consumo de notícias sobre política por meio das redes sociais”, disse o cientista político Pablo Ortellado, do Gpopai.
“Quanto mais manchetes se prestam a essa informação de combate, maior é a performance delas, o que acaba por corroer o sistema como um todo, poluindo o debate político.”
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Angela Pimenta é presidente do Projor – Instituto para o Desenvolvimento do Jornalismo e coordenadora-executiva do Projeto Credibilidade.
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*Artigo atualizado às 17 horas do dia 15 de novembro para corrigir a atribuição errônea da republicação de todo o conteúdo pela newsletter do Projeto Credibilidade. Apenas a parte final do texto, que trata de desinformação no Brasil, é uma republicação da newsletter de setembro do Projeto Credibilidade.