Nos seus 20 anos de existência agora completados, a rede mundial de computadores já viveu duas bolhas e algumas crises existenciais. Uma delas ocorre neste exato momento, quando as empresas envolvidas na difusão de informações encaram uma questão crucial: cobrar ou não cobrar pelos serviços? Ser efetivamente acessível ou fingir uma universalidade?
Em seus 403 anos de existência, os periódicos impressos também passaram por questionamentos fundamentais no tocante à própria periodicidade, tamanho, conteúdo, função social e até mesmo gratuidade. Sobreviveram a todos.
Temos por um lado uma tecnologia que busca perenizar-se e um sistema-processo de difusão do conhecimento calejado pelos trancos históricos, apto a absorver as mutações circunstanciais e avanços tecnológicos que apareceram nos últimos quatro séculos.
Regimes de exceção
Não existe conflito entre o periódico impresso e a internet, são rigorosamente complementares. Existe, sim, um conflito entre o jornalismo impresso e o jornalismo virtual. Este conflito não pode ser ignorado e não se resume ao meio (medium) que empregam (papel ou ciberespaço). Trata-se de um confronto conceitual: o jornalismo virtual é uma opção mais amena, mais participativa e menos qualificada do que o jornalismo impresso.
Quando um jornal como o Seattle Post-Inteligence, com 146 anos de existência, anuncia a sua migração para a web não está fazendo uma simples opção de formato e tecnologia, está mudando de finalidade. Deixa de ser o protagonista de um processo social de massas para transformar-se em coadjuvante de um processo individual multiplicado, o Daily Me, o ‘Eu Diário’ (segundo definição de Nicholas Negroponte, do MIT, mencionado por Nicholas Kristof no Estado de S.Paulo (23/3) [ver ‘O leitor editor de si mesmo‘]. Um Daily We, esmerado e engajado, tem outras exigências.
O jornalismo impresso jamais deixará de utilizar o extraordinário potencial oferecido pela internet, pela web, e será sempre uma instituição sociopolítica. Como ficou comprovado na campanha que elegeu Barack Obama, a blogosfera e o mundo jornalístico-cibernético podem desempenhar importantes papéis no processo político, sobretudo na esfera convocatória, mas dificilmente poderão consolidar doutrinas e elaborar visões de mundo mais consistentes. Dificilmente conseguirão cimentar-se como poder, ainda que informal. A internet e a rede mundial que dela se utiliza são obrigatoriamente fragmentadas, dispersas – esta sua força e debilidade.
No século 17 discutia-se na Inglaterra se tipógrafos e editores de periódicos deveriam ser licenciados pelas autoridades. Governantes queriam tê-los à mão, para controlá-los. No século 20, com o advento do rádio e da TV, as emissoras de informação foram obrigadas a se habilitar como concessionárias.
Apenas a imprensa conservou-se livre de exigências legais e controles estatais. O editor comprava as impressoras, papel, tinta e estava pronto a servir o cidadão multiplicando o que achava necessário divulgar. Em regimes de exceção (como Estado Novo de Getúlio Vargas), a importação de papel era controlada pelo governo, assim também a importação de maquinário gráfico. A censura prévia era secundária.
Qualquer coisa
A internet acabou com este tipo de interferência governamental. Mas o cidadão ficou sujeito às injunções econômicas: se não tiver dinheiro para comprar, alugar ou servir-se de equipamento informático ficará privado de acessar o mundo virtual.
O jornalismo impresso (hoje interligado ao jornalismo virtual) não gosta de lembrar, mas uma empresa como a Microsoft tem um poder descomunal jamais alcançado por qualquer outra indústria em toda a história da comunicação. Os sucessores de Bill Gates jamais pensaram em controlar o conteúdo do que circula nos computadores que fabricam. Mas controlam a fabricação das plataformas e dos sistemas que permitem o seu funcionamento. Este é um dado que um dia deverá ser levado em consideração.
A crise do jornalismo impresso, também iniciada há cerca de 20 anos, foi provocada por uma indústria inapetente para apostar em qualidade. Quando a fundação que edita o Christian Science Monitor anunciou, em 2008, sua capitulação à web, anunciava também a incapacidade para manter os seus padrões de excelência junto com a busca da atualidade. Desde sua fundação o jornal recusou a ditadura dos deadlines, preferia um jornalismo atemporal.
Fazer jornais e jornalismo de qualidade exige uma disposição heróica, um alto grau de sofisticação intelectual e um inabalável compromisso moral. Atributos que fascinam a poucos, seja no mundo jornalístico ou empresarial.
O desafio de vencer na telinha ou monitor de computadores é infinitamente menos complicado. E muito mais divertido – tem algo de show-biz. Com a vantagem de contar com uma multidão de ególatras dispostos a fazer qualquer coisa para aparecer. Até matar.
Leia também
Vinte anos da web — The Economist