Um contraventor de normas, um gênio ou apenas um bêbado. Esses são alguns dos adjetivos atribuídos com frequência ao jornalista Hunter Thompson. Assim como outros mestres da literatura norte-americana, ele tinha compromisso com a imersão plena nos fatos e, para tal, precisava mergulhar nos acontecimentos, levando as situações, muitas vezes, até as últimas consequências. Por isso, para que haja compreensão plena deste trabalho, é honesta e intelectualmente impossível dissociar sua vida de sua obra.
No atual contexto de crise que a assola a mídia escrita, faz-se necessário, pelo menos, repensar os estilos textuais que estão na imprensa. Não faz sentido o impresso ‘dar’ a mesma notícia que a web, televisão e rádio. Diante disso, o papel que o gonzo jornalismo pode exercer, por exemplo, é o de uma alternativa — mais ácida, é verdade — para o que se tem feito na mídia escrita. A grande questão nisso tudo é que editores e, principalmente, chefia não estão nem aí para outras formas de se encarar a realidade. Também, pensemos, como tentar transgredir a pirâmide invertida, sendo que há atrasos de salários em grande parte das redações brasileiras? Como dar outra cara ao lead se o governador é quem banca o jornal?
Biografia
Natural da cidade de Louisville, o jornalista Hunter Thompson nasceu no estado norte-americano de Kentucky, em 18 de julho de 1937. Suas discordâncias com qualquer tipo de normas despontaram no momento em que ele deixara a barriga de sua mãe. Já na adolescência, Hunter e alguns amigos decidem vingar-se do novo motorista de ônibus que fazia a rota da região em que moravam, e que era responsável por levá-los à escola. O condutor, que não tinha muita paciência com um bando de meninos travessos, insistia em não parar o veículo para subirem, o que despertava a fúria deles. Raivosos, decidiram pôr em prática um plano.
O jornalista, na obra Reino do Medo, uma espécie de autobiografia, narrou o episódio, com o sarcasmo e brilhantismo, que lhe foi característico durante toda sua carreira:
“Ele era novo no emprego, talvez um substituto com problemas mentais ocupando temporariamente o lugar do motorista oficial, que era amistoso, gentil e sempre estava disposto a aguardar alguns segundos pelas crianças que corriam atrasadas para o colégio. Toda a garotada do bairro concordava que o porco do novo motorista era um sádico que merecia ser punido, e os mais aptos a fazê-lo eram os Hawks A. C. Víamos mais como dever do que travessura. Era um Insulto insolente à honra de todo o bairro. Íamos precisar de cordas, roldanas e certamente de uma ausência total de testemunhas para executar bem o serviço.” (THOMPSON, Hunter. Reino do Medo, p.5)
Anos depois, no início da década de 1960, Hunter resolvera mudar sua vida e foi embora para San Juan, em Porto Rico. O objetivo era trabalhar numa revista esportiva chamada El Sportivo, mas a publicação durou pouco tempo. Desta experiência, ele escrevera o romance semi-autobiográfico “Rum: Diário de jornalista bêbado”. Depois, o jornalista ainda chegou a trabalhar como correspondente na América do Sul. Hunter, inclusive, estava no Brasil quando os militares articulavam uma forma de derrubar o governo de João Goulart para tentar pôr em prática uma administração que zelasse “pela família e pelos bons costumes”.
Já de volta aos EUA, em 1967, depois de completar dois anos de casamento com Sandy, Hunter compôs seu primeiro livro, o famigerado Hell´s Angels. A obra, que foi fruto de uma pesquisa participativa — o jornalista chegou a virar integrante do grupo de motoqueiros —, nascera com o propósito de investigar a temida gangue de motoqueiros Hell´s Angels, que estava há tempos nos noticiários dos EUA por conta das séries de vandalismos e agressões que eram cometidos à população.
Buscando mostrar como eles de fato se comportavam e qual eram as crenças deles, Hunter chegou a conviver com os motoqueiros por cerca de dois anos. Em trecho da obra, ele disse que, durante a investigação que daria origem ao épico livro, não sabia se era um jornalista que estava fazendo uma matéria sobre os temidos Hell´s Angels, ou se era um integrante do grupo.
No final, além de contar com um livro-reportagem, levou duas surras dos Angels, sendo que uma delas o levou a um hospital, e a outra se deu por motivos de descontentamento dos Angels, que não ficaram satisfeitos com um artigo sobre eles que foi publicado numa revista de difusão nacional.
Três anos depois, Hunter fora designado a cobrir uma corrida de motociclistas em Kentucky, sua cidade natal. O jornalista mergulhou numa análise profunda sobre a sociedade local e seus hábitos. Intitulado de O Derby de Kentucky é degenerado e depravado, o texto tecia duras críticas, de certa forma, à então sociedade estadunidense, que estava afundada na Guerra do Vietnã. Em seguida, ele lançou Medo e Delírio em Las Vegas e participou da cobertura da eleição de Richard Nixon, a quem proferiu duas críticas em artigos publicados na Rolling Stone.
Nas décadas seguintes, Hunter passou a viver à sombra do que produzira em seus anos áureos. Em 2005, o jornalista, aos 68 anos, morrera com um tiro de espingarda em sua cabeça. Antes, porém, ele havia escrito uma carta em que contava os motivos que lhe levaram ao suicídio.
Chega de jogos. Chega de bombas. Chega de passeios. Chega de natação. 67 anos. São 17 acima dos 50. 17 mais dos que necessitava ou queria. Aborrecido. Sempre grunhindo. Isso não é plano, para ninguém. 67. Estás ficando avarento. Mostra tua idade. Relaxe. Não doerá.
Medos e Delírios em Las Vegas
A obra Medo e Delírio em Las Vegas modificou as regras até então estabelecidas sobre o texto jornalístico. A obra narra num ritmo acelerado a decadência e o sonho dos jovens da geração Woodstock 1960.
Nos primeiros anos da década de 1960, os EUA foram o berço e também o principal palco de uma das maiores manifestações de contestação de que tudo os valores da sociedade consumista: era o movimento hippie despontando. O jornalismo passou a sofrer os efeitos das transformações que borbulhavam ao redor do mundo, e acaba estreitando suas conexões com a literatura por meio do surgimento do Novo Jornalismo.
Tom Wolfe, Gay Talese, Trumam Capote e Norman Mailler são considerados os maiores expoentes dessa nova corrente que propõe mudanças no modo como se apura, redige e edita matérias, utilizando-se de uma série de técnicas da literatura de ficção e mantendo uma visão mais humanitária na abordagem dos fatos do cotidiano, contrariando a frieza do jornalismo tradicional.
Considerado um dos gurus da contracultura no Brasil, autor de livros sobre o tema e editor do Pasquim, o jornalista e filósofo Luiz Carlos Maciel afirmou que a contracultura nasceu como um contraponto à infelicidade gerada pelo sistema em si. Para Maciel, as pessoas tornam-se infeliz por conta das amarras a que são submetidos. Por isso, explica ele, a contracultura parte do ponto de vista da politização, hedonista e misticismo profético.
Os primeiros Hippies surgiram em princípios da década de 1960, por puro hedonismo. Entendemos a palavra sem conotações satânica de caça ao prazer em que a modalidade tradicional a envolveu, mas como o desejo simples e elementar da felicidade da vida humana… Para os primeiros hippies, a ênfase se deslocou de seu pólo objetivo para o seu correlato subjetivo. (MACIEL, Luiz. Os anos 60, p.93)
Diante disso, Thompson vivia tal como um hippie. A crítica ao status quo é marcante em suas obras. Medo e Delírio, por exemplo, é ilustrado sonoramente pelas canções de Jefferson Airplane, Rolling Stones e Bob Dylan.
O gonzo soube cruzar como poucos a linha que separa ficção de realidade. Contaminou a matemática jornalística e levou ao pé da letra o citado de William Faulker, um dos gênios da literatura realista norte-americana: “melhor ficção é mais verdadeira que qualquer jornalismo”
Hunter, bem como os autores que são tidos como célebres do movimento que se configurou chamar de Novo Jornalismo, buscava ampliar os horizontes da pauta, para parafrasear o teórico Edvaldo Pereira Lima. Por isso, seus textos buscam a profundidade da natureza humana e da realidade.
O seu trabalho pode oferecer à imprensa escrita, sobretudo aos jornais impressos, formas de redigir textos e, com isso, manter o jornal impresso vivo. Para tal, todavia, é necessário que se tenha interesse em mostrar abordagens diferentes das que são mostradas nos jornais, isto é, na mídia eletrônica.
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Marcus Vinícius Beck é repórter de Cidades de O Hoje, cronista do site Metamorfose e autor do livro-reportagem “Diário Subversivo: dias de embriaguez, utopia e tesão”.
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Referência bibliográfica
THOMPSON, Hunter. Medos e Delírios em Las Vegas: uma viagem ao coração selvagem da América, LP&M, 2016, Porto Alegre, 2016
THOMPSON, Hunter. Reino do Medo, Companhia das Letras, 2014
MACIEL, Luiz Carlos. Os Anos 60, LP&M, Porto Alegre, 2009
KEROAUC, Jack. On the road, LP&M, Porto Alegre, 2013
LIMA, Edvaldo Pereira. Páginas Ampliadas, 4° edição revista e ampliada, editora Mamole, 2009