Por Lúcia Costa
Anos 80. O Brasil vivia uma profunda crise econômica. O governo militar, sob o comando do general João Baptista Figueiredo, direcionava a política econômica desenhada pelo então ministro do planejamento, Delfim Netto. O Fundo Monetário Internacional (FMI) impunha duros ajustes. Desemprego e baixa renda provocavam aprofundamento das desigualdades sociais e aumento de mobilizações populares. A ditadura militar se enfraquecia e nas ruas começavam os movimentos por eleições diretas para presidente. Em 1983, era decretada uma nova maxidesvalorização da moeda, desta vez em 30%. E foi nesse ano que dois amigos, parceiros, formados em jornalismo na faculdade Cásper Líbero 12 anos antes, já com suas trajetórias profissionais bem-sucedidas, se reencontraram e decidiram investir numa publicação que discutisse os meios de comunicação. Nascia a revista Crítica da Informação.
Carlos Eduardo Lins da Silva trazia em seu currículo mestrado na Michigan State University e doutorado na Universidade de São Paulo (USP). Luiz Costa Filho era o empreendedor, abrira uma editora acreditando que, apesar ou por causa da crise econômica, era o momento de criar bons e novos produtos. A sociedade estava discutindo tudo e queria saber mais sobre o que estava consumindo em todas as áreas e, em especial, o que vinha recebendo da mídia. Emissoras de TV, rádios, jornais, revistas e a publicidade nutriam e mostravam a cara dessa nova sociedade.
Montar uma redação enxuta que trabalharia com dezenas de colaboradores foi o primeiro passo para a construção da nova publicação. Numa época em que o preço do papel usado pelas revistas era altíssimo e que era reajustado todos os meses, a opção foi usar o papel couché apenas nas quatro capas. O miolo era de papel jornal. Com uma diagramação cuidadosa, toda em PB, a revista iria priorizar conteúdo.
Após seis meses de planejamento e produção, a primeira edição da revista Crítica da Informação saía em abril de 1983, e trazia na capa reportagem sobre os programas populares, em especial o Povo na TV, produzidos pela recém-inaugurada emissora do empresário e apresentador Silvio Santos, a então chamada TV-S. Naquele ano, a revista Veja completava uma década e meia, e diretores que por ela passaram analisavam a trajetória dela e de outras revistas semanais que naquele período surgiram no país. Foram entrevistados Mino Carta, Tão Gomes Pinto, Augusto Nunes e Raimundo Pereira. Outra matéria discutia o cenário da indústria publicitária naquele ano em que todas as atividades econômicas estavam enfrentando crise e indefinições. Publicitários arriscavam saídas, faziam diferentes análises e projeções do que estava por vir.
A performance das emissoras de rádio no Brasil mereceu páginas numa reportagem que terminava apostando que o então sexagenário meio de comunicação ainda teria chances de crescer, apesar da televisão. Walter Clark, naquela época já ex-todo-poderoso diretor-geral da TV Globo, dava uma entrevista em que dizia esperar que a televisão brasileira encontrasse uma fórmula de relacionamento menos tirana. Apostava que as novas tecnologias iriam tornar os consumidores do meio televisão mais exigentes. E previa que o videoteipe e a eletrônica acabariam com o cinema e a fotografia como existiam na época. As novas câmeras de TV de alta definição atingiriam a mesma qualidade de imagem do cinema. Fato hoje realizado.
Deu na TV
Em 6 de julho de 1983, uma greve de petroleiros antecedeu a primeira greve geral do período da ditadura militar. A pauta partia da ideia de que a difícil relação entre trabalhador e grande imprensa sempre foi um rico campo para o estudo da ideologia do jornalismo, da censura e de outras formas mais sutis do uso da notícia como instrumento de controle social. Era o momento certo para examinar o comportamento da imprensa. A revista, já em sua quarta edição, escolheu analisar como a TV Globo apresentara o assunto. As greves de Paulínia e do ABC – ao contrário do que aconteceria depois com a primeira greve geral do período da ditadura, em 21 de julho daquele ano – não foram censuradas pelo poder estatal ou pelo poder maior da própria TV Globo, mas a cobertura foi ajustada aos padrões que a permitiriam ir ao ar. O trabalhador foi apresentado como o grande bandido, o agente causador dos problemas vividos pela sociedade por ter parado a produção nas refinarias. Nas matérias exibidas pela emissora, o relato do que ocorria foi dado pela voz oficial: o presidente da Petrobras, Shigeaki Ueki; o comandante do Segundo Exército, Ari Pires; o ministro do Trabalho, Murilo Macedo; o líder do PDS, Nelson Marchezan; e representantes da Anfavea, entre outros. Somente no dia do encerramento da greve, foram ao ar algumas palavras dos diretores do sindicato, lamentando o desfecho. A matéria intitulada “O Trabalhador e a TV” chamava atenção ainda sobre o comportamento dos jornalistas na escolha de suas fontes e entrevistas, na edição das matérias que tocavam em pontos sensíveis do poder da época (ou de qualquer época).
O ano de 1983 também foi aquele em que assumiram os governos do Rio e São Paulo, respectivamente, Leonel Brizola e Franco Montoro. Uma matéria previa qual seria a política de comunicação desses novos governadores. Houve, ainda, uma análise do desempenho eleitoral dos candidatos que vinham da televisão, rádio, imprensa e cinema: o público espectador nem sempre se confunde com o eleitorado, concluía. Otavio Frias Filho, então secretário editorial da Folha de S.Paulo, falava sobre a convocação de reuniões com os leitores para discutir a linha editorial do jornal.
A capa da segunda edição tratava do que chamamos na ocasião de “messianismo eletrônico”. Naquela época, os programas de igrejas então chamadas de pentecostais, as evangélicas, estavam entre os mais ouvidos pelo povo brasileiro. Sim, nós acompanhamos a gravação desses programas em estúdios moderníssimos instalados em suas igrejas. O rádio como difusão religiosa antecedia ali as dezenas de programas evangélicos nas emissoras de TV nos anos que se seguiram. Naquela edição já se lamentava o fechamento das salas de cinemas, naquele ano o Brasil contava com 2.000 salas de exibição contra as 4.000 salas de anos anteriores. As revistas de saúde tinham começado a ser publicadas no Brasil um ano antes. E chegaram disputando um mercado que se tornou grandioso. A padronização das emissoras FM de rádio derrubava qualquer tentativa de uma programação mais inteligente e acabara de tirar do ar a Rádio Nova Excelsior, que tinha como diretor de programação o então crítico musical e diretor da revista SomTrês, Maurício Kubrusly.
A TV Record completava 30 anos e deixava pra trás uma história de tempos exuberantes. Ela nunca havia realmente investido em jornalismo, mas tinha em seu currículo programas de auditório, entrevistas, shows que ficariam para sempre na memória dos primeiros anos da TV brasileira. Dois meses após a inauguração da TV Manchete, era feita uma análise dos telejornais da época. Existia uma expectativa de que, com a chegada da emissora, poderia haver melhoria da qualidade do telejornalismo brasileiro. Expectativa frustrada. O jornal era feito com matérias longas, aborrecidas, mal editadas, irrelevantes. Os comentaristas não demonstravam senso crítico e deixavam transparecer ou absoluta insegurança diante das câmeras (Murilo Melo Filho) ou descabido cabotinismo (Alexandre Garcia). Naquele momento, o jornalismo crítico estava na TV Bandeirantes, a cobertura mais abrangente e superficial era da TV Globo, o gênero populista ficava com os jornais da TV-S. Sobrava pra TV Manchete… quase nada.
Liberdade de expressão?
A política de concessão de emissoras de rádio e TV no Brasil precisava ser revista. O Código Nacional de Telecomunicações completava dez anos de gestação. TV e rádio eram considerados os dois mais importantes formadores de opinião do país e, sendo bens públicos, não poderiam ser entregues aos desmandos de irresponsáveis. No final de 1983, a revista Crítica da Informação promoveu, junto com USP e Intercom um seminário para debater esse tema, e perguntava: Quem manda na TV e no rádio?
O Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar), criado em 1980, determinou a retirada do ar de uma campanha da Calvin Klein. Um rapaz aparecia na tela e dizia: “Minha mãe sempre me ensinou a lavar as orelhas, a ficar com as mãos limpas no jantar, a não pôr o cotovelo na mesa. Só que não adianta! Eu quero mesmo ser um vagabundo. O vagabundo é aquele que não está aí com nada…, mas tá com tudo”. Na verdade, o Departamento Nacional de Telecomunicações (Dentel) não gostou do anúncio e encaminhou sua reclamação ao Conar. Daí o debate: isso teria sido uma autorregulamentação do setor, como defendia o então presidente do órgão, ou censura? Será que o Conar, um órgão então com apenas três anos de atuação, não teria coragem de ir contra o Dentel? O pedido do Dentel seria uma ordem? A reportagem mostrava o comportamento do Conar, órgão privado formado por representantes de agências, anunciantes e veículos em seus primeiros anos de ação.
A liberdade do prazer foi o título do editorial da edição que trouxe uma reportagem sobre as revistas eróticas no Brasil. “Toda vez que rebaixamos à condição de pornografia uma revista só porque ela não atende aos padrões (muitas vezes de classe) que julgamos artísticos para representar o sexo, deveríamos nos preocupar um pouco: será que não tem algum fascismo escondido nessa atitude?” A reportagem trouxe entrevistas com os editores das revistas Status, Homem, Privé, Penthouse, Playboy. Apresentava aos leitores o fabuloso livro de Gay Talese, A Mulher do Próximo, que conta a história dos hábitos e costumes da moderna sociedade americana, em especial de Hugh Hefner, criador da Playboy. A matéria trazia ainda depoimentos de mulheres que posavam nuas nas revistas brasileiras. Na mesma edição, o destaque para a produção cinematográfica da Boca do Lixo. Ali eram feitos cerca de 40% de toda a produção cinematográfica nacional.
A última edição da revista Crítica da Informação trouxe na capa um assunto que mexeu e repercutiu muito na época: o crescimento das rádios piratas. Entre 1983 e 1984, a cidade paulista de Sorocaba chegou a ter 42 emissoras de rádios clandestinas. Os transmissores eram na maioria construídos por jovens que queriam se ver na programação das rádios. A pirataria era a saída e entrou na moda.
A chegada das novas tecnologias nas redações, os computadores, também foi pauta em reportagem daquela edição. Haveria risco de demissões? E a saúde do trabalhador em frente a uma tela de computador? O que mudaria dali pra frente? Quem viveu viu a mudança…
Nossos leitores participavam. A seção de cartas era tratada com a mesma seriedade que os leitores dedicavam à revista, sempre comentando, discutindo, concordando ou não com as matérias, nos enviando palavras de incentivo, quase sempre elogiando e louvando os assuntos abordados. Era uma editoria a mais, com debates que traziam novas informações. Não temos mais documentos para afirmar quantos assinantes a revista teve. Eram muitos. E, quando foi decidido pelo fechamento da publicação, todos eles receberam cheques nominais com valores correspondentes às edições que já tinham garantido em suas assinaturas e que não iriam mais ser publicadas. Foi uma enxurrada de lamentações pelo fim da revista e o agradecimento pela ação da pequena editora em devolver o valor correspondente nem que fosse de apenas mais uma edição.
A revista trazia artigos e reportagens de profissionais renomados (Alberto Dines, Hugo Estenssoro, Gabriel Priolli, Sérgio Augusto, entre outros), e de pessoas que como eu começavam na carreira de jornalismo. Havia dentro daquele casarão da Vila Mariana, em São Paulo, um clima de dedicação e envolvimento que alimentava a importância do nosso trabalho.
O debate continua
Para falar da Crítica da Informação, não existe melhor maneira do que esta: destacar o que nela foi discutido, apresentado, previsto. Um cardápio como este de uma revista lançada há 35 anos destaca a relevância da discussão que até hoje é fundamental: a relação da sociedade com os meios de comunicação, a responsabilidade das mídias na construção ou desconstrução do bem para essa sociedade. A importante tarefa de criar na sociedade uma vontade de conhecer e discutir os meios de comunicação e fazer com que os cidadãos deixassem de ser apenas espectadores.
Nesses 35 anos, a publicidade continuou tentando ousar e vender mais, os jornais se engajaram em campanhas muitas vezes distantes do interesse da maioria, as emissoras de TV e rádio, sempre próximas ao poder, trouxeram programações de maior qualidade técnica, porém nem sempre de acordo com o que a sociedade precisa. E no que se refere especificamente ao jornalismo, ele deixou de ser a única fonte de informação para quem quer saber os reais caminhos dos acontecimentos.
Crítica da Informação foi idealizada para ser mensal, mas já em seu segundo número, devido aos custos de produção, foi transformada em bimestral. A primeira edição saiu em abril de 1983, a sexta e última em março de 1984. Fechou porque não se pagava. Não conseguimos atrair o mercado publicitário, que destinava suas verbas para os veículos da grande imprensa, em especial para as emissoras de TV. Não tínhamos fôlego financeiro para esperar uma mudança.
O editorial da primeira edição destacava que a revista surgia para tentar compreender os meios de comunicação, a função política que desempenhavam na sociedade brasileira, as possibilidades de mudanças e os mecanismos pelos quais poderiam ocorrer. A ideia era ajudar as pessoas a se tornarem leitores críticos, telespectadores conscientes, radiouvintes alertas. E finalizava lembrando que a informação sempre foi foco de poder. E foi isso que se tentou fazer durante esse intenso ano de nossas vidas. Restou para a equipe que se engajou nessa empreitada a sensação de ter realizado algo novo e importante para o debate dos meios de comunicação. Restou para essa equipe um cartão de visitas que por muito tempo nos abriu portas em busca de trabalho. Por ter ali realizado algo importante na área de comunicação, éramos reconhecidos.
As seis edições da revista Crítica da Informação contêm o registro de uma época importantíssima em que o país tentava sair de um período de censura, de desrespeito às instituições e repressão. E que precisava criar um espaço para reconstruir e modernizar os meios de comunicação com a participação da sociedade. Uma discussão que continua importante até hoje.
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Lúcia Costa é jornalista freelancer, foi secretária de redação das revistas Crítica da Informação e Brasil Extra, participou da equipe que criou o Caderno 2 do jornal
O Estado de S. Paulo, foi coordenadora de rede do jornalismo do SBT e da TV Record.