Tuesday, 03 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1316

Disque 0800 para governar o país: o discurso de medo e a obediência política

Os discursos que circulam no cotidiano de um país são um indício da imagem que se tem da sua população. Subestima-se a capacidade intelectual de uma população quando se crê que algumas decisões cabem apenas aos mandatários e algumas outras contam com a pressão popular. Enfim, o problema é da ordem da obediência política, pois, às vezes, a grande expressão popular é completamente ignorada e em outros ela é convocada. Essa dualidade se passou nas últimas semanas de janeiro de 2018.

No dia 24 de janeiro, o julgamento do ex-presidente Lula, pelo TRF-4, deu-se em meio a um esquema de segurança terrestre, aéreo e naval. Os manifestantes (conforme notícia do G1 no dia 22/01) do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra e demais apoiadores do Lula (e observe que esses são denominados ‘manifestantes’) reuniram-se em frente ao Anfiteatro Pôr do Sol, às margens do Rio Guaíba, distante cerca de 1 km do tribunal. Enquanto, em uma frase muito sintética, afirma-se “Os movimentos contrários ao ex-presidente estão previstos para o Parque Moinho dos Ventos” (e veja que nesse caso não se definem quais são esses movimentos). A pressão popular, neste caso, é relatada como um inconveniente – a manchete  dizia: “Manifestantes fazem caminhada em apoio a Lula; ato afeta trânsito na chegada a Porto Alegre”.

A população que se manifesta parece ser retratada como um seguidor do Big Brother ou do Master Chef. Ele tem um lugar antecipadamente preparado para ficar, e por isso não há possibilidade de não assinalar uma entre duas posições que oferecem pautas já definidas (a favor ou contra o Impeachment, a favor ou contra a condenação do Lula). Neste espaço que lhe foi atribuído, ele pode gritar um pouco, erguer algumas faixas, produzir a ilusão de que produz uma pressão popular. Entretanto, por um contrato social, ao resultado final cabe-lhe acatar o voto de autoridade, assim como se dá com os renomados cozinheiros avaliadores do Master-Chef, ou aceitar o totalitarismo democrático do 0800 do Big Brother em um conformismo autômato.

A grande mídia minimizou que o Manifesto “Eleição sem Lula é fraude” ultrapassou mais de 100 mil assinaturas. Enquanto pressão popular legítima, esse manifesto afrontava a obediência passiva que se dá de forma vertical pela submissão ou de forma horizontal pelo conformismo. E historicamente, respondendo a uma robotização das atitudes, de forma passiva e conformada, acredita-se que após a manifestação cada um volta para seu lugar estabelecido.

Mas (e sempre há um mas!), na mesma semana, no domingo seguinte à quarta condenatória, o mandatário maior, em um constrangedor esforço midiático, apresenta-se no Programa do Silvio Santos. E à obediência política soma-se a política do medo, em um afã de exibir à sociedade que a Reforma da Previdência é incontornável e deve ser defendida para que em dois anos não se corra o risco de os aposentados ficarem sem salários. Em um enorme desrespeito à capacidade intelectual do cidadão (e até por isso escolheu-se esse programa, considerando que ele atinge as classes menos favorecidas), Temer faz crer na ilusão de que a pressão popular tem voz: – A Câmara dos Deputados, de alguma maneira, transmite a vontade popular. Então, é importante que o Brasil inteiro sensibilize os deputados porque eles representam a vontade popular. E se a população compreender isso que nós dois estamos dizendo aqui, os deputados vão lá e depositam seu voto favoravelmente.

A voz popular é ouvida conforme as relações de poder. Cabe-nos, segundo Frédéric Gros, compreender que é a articulação entre o sujeito e o poder que leva à obediência passiva e essa é ainda pré-política. A obediência política ativa seria aquela que responde a uma obediência ética, “lúcida, refletida, voluntária e responsabilizadora” (2017, p.321) . A submissão econômica e o conformismo social conduzem a uma obediência passiva. Obedecer é um refúgio contra a solidão e uma barreira contra a exposição, por isso é mais fácil seguir o movimento geral e esse sem dúvida responde às relações de poder emergentes a cada momento. Em tempos em que a desobediência política está deslegitimada, apostemos na obediência refletida e não na servidão voluntária.

 

Referência

GROS, F. O esquecimento da política. A obediência e o esquecimento do político. In: Novaes, A. Mutações entre dois Mundos. São Paulo: Ed SESC SP, 2017.

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Vanice Sargentini  é professora titular do Departamento de Letras da UFSCar e pesquisadora das relações entre discurso e mídia.