Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Filme de Daniela Thomas busca uma saída para cegueira nacional

Há um tipo de arte desconcertante. Aquela que, de imediato, entrega ao espectador toda sua força, mesmo que este, em seu breve contato com a obra, não possa dar conta dela plenamente. Há uma agitação, um certo desconforto por captar esta intensidade, e, ao mesmo tempo, ser incapaz de assimilá-la. É a estranha sensação de sobressalto e, de fato, nada ainda ocorreu. Mentira! O jogo mal começou e les jeux sont faits. “Vazante”, filme de Daniela Thomas, inscreve-se neste peculiar tipo de arte.

Um filme não opera tal qual uma equação. Dele não deve ser cobrado uma derivação eficiente de um componente ao outro, nem exigir que haja uma beleza lógica em seu desenrolar. Por vezes, basta uma sequência de imagens, uma justa composição na dramaturgia para que o filme alcance o seu esplendor. O empreendimento cinematográfico, que beira a uma realização do impossível, ao flertar constantemente com este risco fatal, o do seu fracasso, não precisa vencer a batalha de cada travelling, por exemplo, mas, e esta é a magia de sua força, basta um momento de graça para que todo o esforço da direção, dos atores e da montagem se justifiquem. Não há filme mal resolvido. Ou o filme cumpre sua função ou não passa de uma coletânea de imagens cuja a produção custou caro demais para ser executada. Seu triunfo não comporta carências nem excessos.

Nudez. A câmera traça uma linha. Um parto que termina com a morte da criança e de sua mãe, um senhor de terras descalço em seu cavalo encharcado por uma tempestade, um desfilar indistinto de pés e patas no aguaceiro e uma criança hipnotizada pela chuva enquanto chafurda seus pés na lama. Toda intensidade concentra-se nesta sequência inicial. O filme termina aqui, em todo o seu brilho.

O resto da obra é puro exercício de generosidade da cineasta. Daniela Thomas não quer nos deixar só, diante desta volúpia silenciosa, desta banalidade inquietante. Gratuidade? De modo algum. Os acontecimentos que seguem a cena inicial, a esta cena-fundamento, capitalizam e desdobram as possibilidades instauradas pela imagem construída. Há um princípio poético proposto pelo filme em que a sociedade brasileira surge no embaraço dos signos ocidentais. Trata-se da geografia do país, de sua compleição mítica.

A tortuosa linha imagética é reta, inequívoca. Esta ficção impõe-se como a justa forma de expressar a realidade. A dicotomia tradicional, elite e povo, ou poderosos e oprimidos, não é apagada, contudo, é embaralhada, produzindo um jogo louco a olhos razoáveis. O senhor de panos e árvores anda descalço como um cavalo apoia-se em seus cascos e dorme no chão tal qual seus escravos. Dos escravos é extraído sua humanidade, mesmo que a única dignidade exposta na obra seja justamente de um escravo fugitivo, o líder, ao trocar sua liberdade pela salvação de seu algoz (de se notar que o personagem de Toumani Kouyaté é a figura estrangeira à balbúrdia brasileira).

A ingenuidade, encarnada na figura da menina Beatriz, nada a aproxima da esperada destinação com a pureza; sua existência é digna de um autismo existencial. O letrado Bartholomeu, âncora solitária da sensibilidade e dos modos, termina por vender sua filha amada para escapar do inferno verde e chegar à sonhada cidade do Serro. E o capataz Jeremias, negro liberto, roga-se dono da vida e da morte de seus irmãos africanos, tratado por ele como simples objetos de manejo.

A mistura em nossa sociedade, tão incensada pela intelectualidade brasileira, extrapola os pigmentos das peles e os costumes praticados e acaba por ultrapassar todos os limites do bom senso, encontrando seu real efeito na radical confusão de estruturas normalizadoras da cultura européia ocidental. Esta profusão de quid pro quo tem um custo inaudito: a violência. Nossas relações, da cortesia social ao coito matrimonial, estão amalgamadas por uma violência silenciosa, porém assustadoramente cruel.

Uma prospecção genealógica encontrará no cerne desta cadeia disparatada nada mais do que um grito feroz, uma resistência ontológica a qualquer conciliação, harmonia ou plenitude. A experiência brasileira apoia-se em uma cicatriz inominável, não verificável e, para nossa tragédia, insistentemente não dita.

Não se trata de um destino grego. Sua longevidade em nossa história não decorre da emanação de uma origem, seja ela histórica, divina ou social. Não há uma origem stricto sensu. O que existe é uma maquinação reiterada que busca, através de transformações, manter intacta esta terrível estrutura delirante, em que o homem age dentro de sua animalidade, coberto por uma fina camada de racionalidade, replicando a violência, sem distinção de classe, cor ou gênero, mesmo que ela seja vivenciada em graus correspondentes a sua posição social, de gênero ou de cor. Esta hierarquia impõe assim, a despeito da homogeneidade de fundo, uma urgência. Há violência entre senhor e escravo, marido e mulher, negros ou pobres. Há violência. E ela organiza e estrutura nossa sociedade, não importa o quanto sejamos educados, o quanto sejamos ricos, o quanto sejamos oprimidos, o quanto sejamos ingênuos.

Por esses motivos, há uma distância intransponível entre “Vazante” e “A fita branca”. Se quiséssemos encontrar um par cinematográfico para a obra, melhor seria traçar um diálogo com o conto de fadas espanhol, dirigido por Carlos Saura, “Ana e os lobos”. Enquanto Michael Haneke desenha com maestria um initium para o mundo alemão, uma busca pela origem da crueldade e as consequências da seriedade doentia de um país, Saura ambiciona explicitar os jogos de força, e não seu começo, da complicada e brutal operação da sociedade espanhola. Semelhante ao filme espanhol, “Vazante” configura-se como um instantâneo da situação brasileira, expressando o momento paralisante em que nos encontramos. Só por preconceito ideológico, é possível edificar uma correspondência entre a branquidade austríaca e mestiçagem brasileira.

É diante desta rede de temeridades travestidas de meras castas sociais, sobre a qual assenta a sociedade brasileira, que o filme de Daniela Thomas atua como uma encarnação artística. Quem buscar fundamentos para a obra em teses sociológicas, metafísicas ou culturais, interditará o próprio esforço do filme. “Vazante” não se debruça sobre o nosso começo, mas sobre o nosso caminhar. E é através do recurso da tipologia, tão característico da experiência cinematográfica, que é capaz de captar este grito primal que atordoa todos nós. Não é a procura pelo ovo da serpente, mas uma fulgurante tentativa de encontrar uma saída à cegueira nacional. É uma prece estética por uma vazante.

“Vazante” é um filme político. Sua estética é política. A recusa de uma encenação naturalista, as passagens de cena através de telas pretas, personagens que jamais são maus ou bons por inteiro, a renúncia à dicotomia entre o certo e o errado tão característica de uma dramaturgia de massa no Brasil, o desprezo pelas cores, o desdém pela velocidade que entorpece e cativa o espectador, toda a construção técnica do filme deflagra sua dimensão política. Não seria criando um zorro mulato ou fantasiando uma epopéia de negros que a estética transcenderia seu valor burguês em nome de uma suposta militância. Em “Vazante”, a aposta de Daniela Thomas é alta e contra a banca: é por causa da estética que o filme é político.

Não por outro motivo, a questão negra é capturada de assalto pelo viés feminino. Ao produzir esta torção, o tema da violência adquire tessitura social, vertendo da personagem de Feliciana o índice genuíno da violência. Toda uma engrenagem cotidiana, estruturada em torno da violência, ganha em cena sua expressão mais atroz: a mulher negra. Sem primazia de uma opressão sobre a outra, mas priorizando a tensão mais agudo do processo, Daniela Thomas exibe a face despudorada de nossa comunidade, criando um embaraço para quem desejar interpelar este estado de coisas. Não se trata mais de conquistar o poder e revolucioná-lo.

O poder não é um instrumento do qual se possa dispor para executar um projeto. Experiências políticas do século passado indicam esta falácia quixotesca. Ele sequer é posto como elemento cênico na obra, ao menos não como lugar a ser tomado. Se nem o posto mais elevado desta pirâmide está imune à selvageria, porque haveria de existir tal ambição? Sua problematização em cada quadro do filme, e isso não pode ser negado (do pai sobre a filha, do marido sobre a esposa, do capataz sobre o trabalhador, do liberto sobre o escravo, sem falar nos refluxos destas forças, como de Beatriz sobre Antonio ou do líder sobre Jeremias), é graças à compreensão do poder, não como apartado do corpo social – e isto é capital –, mas como aquilo que sustenta e forja cada ação humana.

Deste modo, é possível dizer que o caráter político reclamado pelo filme não é o da falta de poder dos oprimidos, mas o da ausência de atenção à rede que sustenta e molda a relação do homem com a mulher, do empregado com o patrão, do cidadão com a cultura, de si consigo mesmo. Não pode faltar o que não se perdeu. E ainda assim, o preconceito racial existe. E a subjugação da mulher é um fato. Este é o mistério contemporâneo a ser decifrado.

Sem garantias ou esperanças palpáveis, “Vazante” instaura uma brecha nesta barreira constantemente atualizada que faz com que nossa sociedade se mantenha, anacronicamente, a mesma a cada instante. Contudo, temo que a obra de Daniela Thomas tenha vindo cedo demais. Acusações disparatadas, indiferença na recepção e a incapacidade de vislumbrar nesta obra sua real força devem indicar que ainda não somos capazes de enfrentar a nós mesmos. Cedo demais. Ainda estamos sonhando com paraísos artificiais, progressos falidos e avanços impossíveis. Tal qual Antonio em sua rede, ainda desejamos bloquear a força do sol, em nome de uma siesta tranquila. Continuamos a viver a tranquilizadora fábula da cordialidade infantil. Em nosso berço esplêndido, somos portadores do pecado original: desconhecemos a nós mesmos e rimos daqueles que nos trazem a fúnebre notícia.

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Marcelo S. Norberto é professor do Departamento de Filosofia (PUC-Rio).