Com fala tranquila e, precisa em cada argumento, o jornalista gaúcho Flávio Tavares explicou à turma de estudantes do curso de Comunicação Social da Universidade da Região da Campanha, em Bagé, os motivos e fatos que o levaram a ter uma trajetória tão vibrante e histórica no ofício jornalístico.
De Getúlio Vargas a Salvador Allende, de Brizola a Che Guevara; dos textos para a campanha da Legalidade aos relatos de quem fora banido do país pelo regime de exceção civil-militar, Flávio Tavares viu e participou ativamente da história nacional. O encontro aconteceu em novembro de 2004. Era uma sexta-feira quente, abafada, em que os escassos períodos de chuva, que logo se dissipavam, traziam apenas mais calor à cidade. Tavares chegou ao município após uma viagem de quatro horas de Porto Alegre até a chamada “Rainha da Fronteira”.
Ele havia lançado há alguns meses, o segundo livro, “O dia em que Getúlio matou Allende”. Obra que em pouco tempo se tornou uma das principais de 2004, assim como fora “Memórias do Esquecimento”, publicada cinco anos e que talvez tenha sido um dos mais sinceros, comoventes e vivos discursos contra as atrocidades perpetuadas por regimes ditatoriais. Ambos os livros foram aclamados pela crítica e renderam prêmios Jabutis a Tavares. Em virtude da publicação, o jornalista de Lajeado estava, naquele momento, viajando pelo Brasil para participar de conferências, seminários, feiras literárias e outros eventos, divulgando sua recém-lançada obra.
Em Bagé, sua presença encerrou as atividades da programação da semana acadêmica do curso de Comunicação Social daquele ano. Tavares veio de carro com o diretor do curso e, pelo caminho, notava que o Pampa não era mais o mesmo. “Como plantaram eucaliptos e acácias. Isso não tem nada de relação com a vegetação nativa dessa região”, comentou sobre a expansão da silvicultura após políticas estaduais de incentivo à atividade, tomadas no final da década de 90, o que fez com que muitos produtores rurais abandonassem a centenária produção pecuária, pelo plantio de árvores exóticas àquele ambiente.
Chegando ao local da palestra, o jornalista atendeu ao público e autografou alguns exemplares dos dois livros. Concedeu entrevistas aos veículos de imprensa local. Para o já extinto jornal Correio do Sul (veículo que funcionou de 1914-2008), ele destacou ao repórter Paulo Fontes, que os militares brasileiros precisavam assumir publicamente os delitos e crimes cometidos, na maioria, em nome do exercício da democracia. Sobre sua atuação em grupos de guerrilha, ele destacou a inexperiência dos que, como ele, lutaram para transformar o país naquele contexto. Da dor vivenciada nos porões da ditadura, Tavares frisou ao impresso: “pois aqueles que conseguiram sobreviver as prisões e torturas do período da ditadura, como eu, se tornaram melhores, menos rígidos”. Já ao jornal Minuano, periódico ainda em atividade em Bagé, Tavares ressaltou: “Aproveitem, procurem viver a liberdade. Precisamos participar da realidade do país”, frisou o jornalista que se declarou um “socialista com amor cristão”.
Em sua palestra, os jovens acadêmicos participaram ativamente do evento, perguntando acerca de temas relacionados ao passado, como censura à imprensa, ditadura militar, bem como pautas atuais, naquele período, como a política de globalização norte-americana pós-atentados de 2001; governo Lula, um ano do apogeu do escândalo do mensalão e a discutida abertura dos arquivos militares durante o regime de 1964-1985.
Cortês, após a palestra participou de um jantar com a equipe do diretório acadêmico, o qual eu fazia parte. Lá, ele ouvia cada relato dos jovens estudantes sobre as dificuldades para ingresso no mercado profissional, como os dilemas típicos de quem ainda não sabe precisamente qual será o caminho após a graduação. Falava ternamente sobre os novos rumos do jornalismo com o avanço da internet e, de forma sincera, também recordava os inúmeros temores que já havia enfrentado e superado em sua longa carreira. Naquele momento, era o professor acadêmico Flávio Tavares que nos dava uma aula informal, logo ele, de tamanha expressão como professor da UNB.
No outro dia, antes de retornar à capital gaúcha, Flávio Tavares quis revisitar alguns locais de Bagé. De forma humilde pediu que o conduzíssemos pela cidade para conhecer alguns pontos históricos daquela Bagé de fronteira com o Uruguai, de forte presença militar e que, ironicamente, era berço do terceiro presidente da ditadura militar, Emílio Garrastazu Médici. Também quis conhecer a universidade em que estudávamos. Na sede do Diretório Acadêmico brincou ao ver o pôster de Che Guevara que estampava uma das paredes do espaço. A mítica imagem do argentino captada por Alberto Korda o fez relembrar dos momentos de convívio com o guerrilheiro na Conferência Internacional que ocorrera em 1961, em Punta del Este, no Uruguai. “Che sempre saí bem na foto!”, disse. Dessa relação com Che, publicou três obras ao longo dos anos: “O Che Guevara que conheci e retratei” (2007); “Meus 13 dias com Che Guevara” (2013) e “As três mortes de Che Guevara” (2017).
Aos nos despedirmos, uma estranha sensação acometeu àqueles jovens estudantes. Em menos de 24 horas de convívio, aprendemos lições que ficariam vivas por todos esses anos. Alguns dos ensinamentos concedidos pelo “colega mais velho”, como ele nos dizia, mantêm-se ativos em cada um dos três estudantes de jornalismo. Eu, Ary Silva e Sidimar Rostan, iríamos nos formar e prosseguir com estudos e trabalhos voltados à imprensa, sem esquecer de cada indicação dada por Tavares, no que se refere às ações jornalísticas, das fontes aos leitores, e em especial, do elemento transformador de vidas e sociedades que é a informação.
O convívio daquele encontro em novembro, permaneceu por contatos feitos pela internet. Certa vez, ao indagar de como estávamos e sobre o que estávamos produzindo, ele manifestou apreço: “Com vocês aprendi que a juventude pode ser adulta e séria, sem perder a ternura juvenil jamais! Os moços sérios são ainda mais moços!”, reiterou em uma das “cartas pela internet”, como ele se referia à nossa comunicação.
Anos depois, eu o indaguei em entrevista concedida ao jornal Folha do Sul, em reportagem sobre os 50 anos do golpe militar, de como era produzir e divulgar informações em um período de tamanha restrição como o vivido após 1964. E Flávio Tavares respondeu: “Toda opressão sempre leva a que busquemos formas mais inteligentes para escrever ou nos comunicarmos. Assim, fomos obrigados a escrever melhor, recorrendo a sutilezas, imagens e metáforas, para tentar ludibriar os censores que nos oprimiam. Mas prefiro que não tivéssemos sido obrigados, todos nós, a buscar formas mais inteligentes e sutis, como o fizeram Chico Buarque e tantos outros. Preferiria que continuássemos burros mas com plena liberdade de pesquisar, escrever ou compor canções. A liberdade de criar é insubstituível. É como o oxigênio que respiramos”, ensinou mais uma vez a este jovem colega. Obrigado professor!
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Marcelo Pimenta e Silva é jornalista.