Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Tortura e verdade nua e crua

O abalo diante das imagens do jornalista Vladimir Herzog, fotografado naquele longínquo outubro de 1975 por seus próprios torturadores nos porões do DOI-Codi da Rua Tutóia, em São Paulo, dá lugar a quatro certezas cristalinas: 1) Vlado aparece vivo numa repartição do II Exército; 2) estava bem fisicamente, apesar de ultrajado; 3) protegia seu rosto do fotógrafo, uma reação psicologicamente saudável; 4) era clara e categoricamente um civil desarmado. Um civil rendido, bem distante de conflitos armados.


Humilhado, constrangido, concordamos todos, mas reativo. Não estava inerte. Um homem assim não se suicida. E, principalmente, um preso nu não acha um cinto para se enforcar. O fato implacável que se depreende destas fotos é que Vladimir Herzog, que se apresentou voluntariamente à Tutóia, foi executado.


Estas certezas são o triunfo jornalístico maior da espetacular série iniciada no domingo (17/10) pelo Correio Braziliense, que merece uma chuva de adjetivos elogiosos [veja a capa desta edição do Correio, em formato PDF, em http://stat.correioweb.com.br/
cw/EDICAO_20041017/fotos/capa.pdf
]. O repórter Rudolfo Lago foi atrás de uma dica e mergulhou num arquivo empoeirado da Câmara dos Deputados. A matéria desmascara as mentiras dos representantes do regime militar e de seus remanescentes em nossas Forças Armadas – e fora delas, cabe lembrar. O país deve ao bom jornalismo a queda de uma das farsas mais maquiadas da história do Brasil, que ainda hoje convence ingênuos e dá ao Ministério da Defesa (criado em 10 de junho de 1999, portanto no governo democrático de Fernando Henrique Cardoso) o direito indefensável de negar – neste outubro de 2004 – os assassinatos por tortura em dependências militares.


A máscara, agora, é um molde tirado do rosto dos cadáveres da ditadura. Para o bem da profissão, tão aviltada ultimamente, coube a um jornalista este choque de realidade.


O extraordinário material descansa na Comissão de Direitos Humanos da Câmara desde 1997. Quando um obscuro cabo do Exército o entregou, há sete anos, foi devidamente anunciado. Os setoristas da Câmara, na época, só se interessaram pela revelação, realmente espantosa, de que em pleno governo Fernando Henrique o SNI de então, a Abin, ainda arapongava partidos de esquerda [ver abaixo matéria da Folha]. As caixas continuariam esquecidas se o jornalista Davi Emerich, assessor de imprensa do senador Roberto Freire, presidente do PPS, que conhecia seu conteúdo e andava inconformado com a desimportância atribuída à papelada, não atraísse à pesquisa o repórter Eumano Silva, licenciado do Correio Braziliense para escrever um livro sobre a guerrilha do Araguaia.


A pasta verde


Pesquisando os documentos, Eumano descobriu coisas do arco da velha. Num país como os Estados Unidos, informação desse calibre valeria ouro, mas ele a repassou ao colega Rudolfo Lago, o Laguinho, 40 anos, filho de José Lago, jornalista que trabalhou no Globo na década de 1960. ‘Passei duas semanas pesquisando’, disse o repórter ao Observatório na noite de segunda-feira (18/10), em conversa pelo telefone. Sua primeira descoberta foi importantíssima: boletins detalhados sobre o número de presos, e até o número de presos mortos no DOI-Codi. Mostra que os torturadores, como bons burocratas, registravam suas atividades, algumas delas em papéis coloridos, uma cor para cada atividade.


Como lembrou recentemente um jornalista, um velho dirigente do PCB, Giocondo Dias, dizia que passado é como diamante, não se joga fora. Dos registros dos militares nada escapava. Laguinho contou que estão entre os informes até prosaicas atividades de um filiado do MDB no Mobral de Mogi das Cruzes, citado como ‘o comunista fulano de tal…’ Sob a surrealista rubrica ‘Psicossocial’, constam os presos de cada mês do DOI-Codi de São Paulo. ‘Numa tabela com os ‘acumulados’ das mortes de outubro, que originalmente eram 47, soma-se mais um – o Herzog.’


As fotografias estavam numa pasta verde, daquele tipo comum, de plástico: muitas delas de encontros e congressos de partidos de esquerda no período democrático – e as de Vlado. ‘Dedos são visíveis segurando as fotos, ou seja, são fotos de fotos’, contou Laguinho. A viúva, Clarice Herzog, que recebeu as fotografias de Vlado por e-mail, telefonou ao jornal na manhã de sábado. Chorando muito, identificou o marido em conversa com Erica Andrade, co-autora da matéria. Clarice teria ficado impressionada com uma terceira foto, em que Vlado aparentemente estaria deitado numa cama tendo uma mulher de baby-doll a seu lado, gritando. O Correio montou uma rede de comunicação na tentativa de identificar a mulher, com os presos políticos daquele setembro/outubro de 1975 (na Rua Tutóia, havia 135 presos no período). Observando-se atentamente, no entanto, as imagens parecem ‘trepadas’, superpostas, como ocorria freqüentemente com os filmes das antigas máquinas fotográficas.


Glórias e redenção


Falta falar da reação dos acusados. Eis alguns trechos da resposta ao Correio Braziliense do Centro de Comunicação Social do Exército:


** ‘As medidas tomadas pelas Forças Legais foram uma legítima resposta à violência dos que recusaram o diálogo, optaram pelo radicalismo e pela ilegalidade e tomaram a iniciativa de pegar em armas e desencadear ações criminosas’.


** ‘O Movimento de 1964, fruto de clamor popular, criou, sem dúvidas, condições para a construção de um novo Brasil, em ambiente de paz e segurança’.


** ‘Quanto às mortes que teriam ocorrido durante as operações, o Ministério da Defesa tem, insistentemente, enfatizado que não há documentos históricos que as comprovem, tendo em vista que os registros operacionais e da atividade de inteligência da época foram destruídos em virtude de determinação legal. Tal fato é amparado pela vigência, até 08 de janeiro de 1991, do antigo Regulamento para a Salvaguarda de Assuntos Sigilosos (RSAS), que permitia que qualquer documento sigiloso, após acurada análise, fosse destruído por ordem da autoridade que o produzira, caso fosse julgado que já tinha cumprido sua finalidade’. Centro de Comunicação Social do Exército (Cecomsex)’.


Reação tão revoltante, especialmente diante das fotos de Vladimir Herzog nu e indefeso, que enfureceu o presidente Lula e abriu crise que envolveu o Palácio do Planalto, o Ministério da Defesa e o Comando do Exército, registrada pelos jornais da terça-feira (19/10). Sinopse de matéria do Estado de S.Paulo feita pela Agência Brasil (www.radiobras.gov.br/sinopses.htm#2), disponível na madrugada da terça, diz:


‘Logo pela manhã [da segunda, dia 18], Lula convocou o ministro da Defesa, José Viegas, e disse que o assunto não poderia ser restrito às Forças Armadas. O ministro explicou que a nota foi feita à sua revelia’.


Para Rudolfo Lago e sua parceira Erica Andrade, essa matéria vale glórias. Para os velhos jornalistas da geração 68, que hoje estão perto dos 60 anos, em especial os que tiveram a infelicidade de se tornarem presos políticos, a matéria é uma espécie de redenção. Tudo o que tentaram contar ao longo das décadas tem sido tachado de ‘intriga de Moscou’, revanchismo, saudosismo. Mais recentemente, entraram na lista dos fracassomaníacos, neobobos, notórios adeptos de teorias da conspiração ou contrabandistas da verdade. Alguns ainda são abertamente ameaçados por ex-militares mantenedores de sites que desrespeitam claramente a Constituição.


Esses jornalistas agradecem, penhorados, ao Correio Braziliense.

MATÉRIAS DA ÉPOCA

Exército é acusado de espionagem política


Folha de S.Paulo, 25/7/1997



Autor: SILVANA DE FREITAS; WILLIAM FRANÇA


Origem do texto: Da Sucursal de Brasília


Editoria: BRASIL Página: 1-17 7/12253


Edição: Nacional Jul 25, 1997


Legenda Foto: O cabo José Alves Firmino (dir.), que seria espião do Exército, posa com Lula em Congresso do PT em 93


Crédito Foto: Reprodução/Folha Imagem


Observações: COM SUB-RETRANCA


Vinheta/Chapéu: SERVIÇO SECRETO


Assuntos Principais: EXÉRCITO; SERVIÇO SECRETO; RELATÓRIO; PT /PARTIDO/


Agentes militares que acompanharam congressos do PT em 1993 e 1995 podem ter sido infiltrados


SILVANA DE FREITAS


da Sucursal de Brasília


O Exército acompanhou, relatou com detalhes e divulgou internamente atividades recentes do PT, como congressos nacionais, realizados em 1993 e 95, conforme cópias de documentos confidenciais divulgadas pela Comissão de Direitos Humanos da Câmara.


Em 16 de setembro de 1993, o CIE (Centro de Inteligência do Exército) distribuiu aos comandos das principais unidades 54 cópias do relatório de 21 páginas sobre o 8º Congresso Nacional do PT, realizado dois meses antes em Brasília.


O ´´Relatório Especial de Informações nº 3´´, cuja cópia foi divulgada pela comissão, traz informações como a disputa interna das tendências do PT e a atuação de grupos de homossexuais.


Também reproduz o discurso feito pelo presidente de honra do PT, Luiz Inácio Lula da Silva, então candidato às eleições presidenciais, e as listas dos integrantes da mesa e novos membros do diretório e da executiva nacionais.


Outro documento, de duas páginas, orienta os ´´arapongas´´ do Exército sobre o acompanhamento do 10º Congresso do PT, realizado em agosto de 1995, em Guarapari (ES), já no governo FHC.


Esses textos sigilosos estavam nas mãos do cabo José Alves Firmino, 27, ´´informante´´ do serviço de inteligência do Exército de 1990 a 95. O material foi entregue pela família do militar à comissão.


Cópia de uma carta de Firmino a seu comando, em Goiânia, indica que ele atuou no Comando Militar do Planalto como infiltrado no PT e no MR-8 (Movimento Revolucionário 8 de Outubro).


Ele foi transferido, no ano passado, de Brasília para Goiânia e estaria hoje sofrendo perseguição no Exército. Teve negado pedido de aposentadoria por ser portador de hanseníase. A família pediu ajuda à comissão para proteger a vida e a integridade física de Firmino.


O dossiê foi encaminhado aos ministérios do Exército e da Justiça e ao Palácio do Planalto. O presidente da comissão, deputado Pedro Wilson (PT-GO), deve se reunir com o ministro Zenildo de Lucena (Exército) no dia 5 de agosto.


Os documentos, com timbres e carimbos aparentemente oficiais, indicam acompanhamento sistemático, no governo militar, de militantes de esquerda e políticos, como Fernando Henrique Cardoso.


O ´´prontuário nº 1325´´ traz os passos do líder estudantil Honestino Guimarães, de outubro de 1965 até 69, antes de ser preso e morto.


A Fenaj (Federação Nacional dos Jornalistas) anunciou ontem que vai processar o cabo Firmino e o Exército por falsidade ideológica. Um dos documentos usados, no nome de Marcos Oliveira dos Santos, é a carteira de jornalista.


Colaborou William França, da Sucursal de Brasília


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O serviço dos agentes


Folha de S.Paulo, 28/8/1997



Autor: JANIO DE FREITAS


Editoria: BRASIL Página: 1-5 8/13819


Edição: Nacional Aug 28, 1997


Seção: JANIO DE FREITAS


Os numerosos documentos da espionagem feita na esquerda verdadeira e na fictícia, desviados dos arquivos oficiais pelo cabo José Alves Firmino, não valem só como acervo histórico, mas, na mesma medida, como advertência para as realidades encobertas do presente e ainda fora do alcance de instrumentos democráticos.


Entre os documentos encontram-se, por exemplo, relatórios oficiais de espionagem política realizada em 95, por agentes infiltrados na reunião nacional do PT. Tal como era feito nas reuniões de opositores, quaisquer que fossem, ao regime militar.


Mas em 95, com o regime militar encerrado havia dez anos, já era o governo de Fernando Henrique Cardoso, ´´o professor, o intelectual, o social-democrata´´. E, no entanto, os ´´serviços´´ oficiais mantinham, intocada, a sua faina sórdida, inconstitucional, ditatorialesca.


Desde que de esquerda ou tidos como tais, os parlamentares do Distrito Federal e ocupantes de cargos no atual governo do DF, chefiado pelo petista Cristovam Buarque, são personagens de um lote especial de documentos: fichas dos ´´serviços´´ com fotografias, levantamentos biográficos e acompanhamento das atividades.


Foram todos eleitos e empossados quando Fernando Henrique Cardoso o foi. A ação dos agentes para fichá-los só pode ter ocorrido, portanto, já no governo de Fernando Henrique Cardoso.


Agente ele próprio, o cabo Firmino está entregando à Comissão de Direitos Humanos da Câmara o material que desviou durante anos, do qual o deputado Agnelo Queiroz repassa agora mais uma boa quantidade aos cuidados da Universidade de Brasília. A coleta do cabo Firmino ficou limitada, porém, à data do seu afastamento nos ´´serviços´´.


Nada permite supor, então, que a espionagem não tenha continuado depois de 95. E continue ainda, vasculhando vidas e atos (comprovadamente não só de petistas) sob o regime dito constitucional e o governo dito democrático do presidente dito democrata.


Defesa contra essa arbitrariedade criminosa, suficiente para fundamentar até outro impeachment, há de sobra na legislação. Mas não há quem transponha a barreira de coniventes com tal crime. Logo, aguarde com paciência a possível aparição, no futuro incalculável, da sua própria ficha feita e atualizada pelos espiões dos modernizantes moralizadores do país.


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Relatório sobre PT foi ´equívoco´


Folha de S.Paulo, 27/7/1997



Origem do texto: Da Sucursal de Brasília


Editoria: BRASIL Página: 1-17 7/12226


Edição: Nacional Jul 25, 1997


Observações: SUB-RETRANCA


Assuntos Principais: EXÉRCITO; SERVIÇO SECRETO; RELATÓRIO; PT /PARTIDO/


da Sucursal de Brasília


A greve das PMs (polícias militares) mobilizou oficiais do serviço de inteligência do Exército para o trabalho de acompanhamento e avaliação do risco de conflitos graves em pelo menos duas cidades: Recife e Maceió.


A atividade consiste em observar a movimentação nas ruas e o clima de manifestações públicas, ouvir relatos da tropa sobre essas questões e acompanhar o noticiário para transmitir avaliação, nesse caso, ao Comando Militar do Nordeste.


A informação foi dada ontem pelo Ccomcex (Centro de Comunicação Social do Exército). Segundo o órgão, essa é uma atividade natural que, caso o Exército não fizesse, estaria fadado ao fracasso.


Fora dos momentos de crise, o trabalho também inclui a observação sobre o potencial de conflito de certas organizações, ´´sejam elas de esquerda ou direita´´.


O serviço de inteligência da corporação sofreu reestruturação em 1995, com a aprovação de diretrizes para criação das Companhias de Inteligência nos sete comandos de área (regionais).


A portaria definindo as diretrizes previu adaptação das instalações, aporte de recursos e aquisição de equipamentos como embarcações (lanchas, barcos e voadeiras). Segundo o Exército, o objetivo é reduzir a estrutura antes existente.


O Ccomsex disse ontem que o objetivo da reestruturação foi distanciar o serviço de atividades que não sejam puramente militares.


O Exército negou o trabalho de espionagem política e informou que o acompanhamento, por exemplo, de congresso do PT, para produção de relatório interno, foi ´´um equívoco´´, sem consequências práticas.


Segundo o Ccomsex, o cabo José Alves Firmino, cuja família divulgou documentos confidenciais produzidos pelo setor de inteligência, reuniu material que, pelo menos parcialmente, teria sido produzido por iniciativa própria.


Não teria sentido, por exemplo, orientação para que tirasse foto ao lado de Luiz Inácio Lula da Silva, como se fosse militante do PT.


O Exército nega que ele tenha sido agente infiltrado no PT e MR-8 (Movimento Revolucionário 8 de Outubro), que apóia o PMDB.


O porta-voz da Presidência da República, Sergio Amaral, afirmou ontem que ´´a prática é condenável e contraria a determinação expressa do ministro do Exército de que o trabalho de investigação da pasta se restrinja a assuntos militares´´.