Diz o manual de redação da Folha de S.Paulo que eu tenho aqui: “A maioria dos leitores de um jornal lê apenas o título da maior parte dos textos editados. (…) O título deve ser uma síntese precisa da informação mais importante do texto.”
Nenhum jornalista discorda disso, certo? Mas o que aconteceu no último fim de semana? Uma desembargadora postou no Facebook uma “informação” falsa que estava circulando no WhatsApp sobre Marielle Franco. O boato foi compartilhado por pelo menos um deputado federal e algumas páginas com muitos seguidores do Facebook.
Na hora de escrever sobre o caso, a maior parte dos grandes veículos brasileiros focou em reproduzir a acusação sem substância da desembargadora no título. Alguns deles: “Desembargadora acusa Marielle Franco de ‘engajamento’ com bandidos”, “Desembargadora: Marielle foi eleita pelo Comando Vermelho”, “Ela estava engajada com bandidos’, diz desembargadora do RJ”, “Desembargadora posta que Marielle ‘foi eleita pelo Comando Vermelho”. E por aí vai.
Nenhuma dessas matérias, pelo que vi, deixa de citar o fato de que a desembargadora não tinha uma fonte confiável para amparar as acusações. Algumas falam isso no subtítulo, como a Veja (“Com base em fake news…”). Outros deixam claro no corpo que a mulher “ouviu de uma amiga” a acusação grave, deixando subentendido que não era para se levar a sério. Ou seja: em termos de informação, as reportagens estão “corretas”.
Mas claramente podiam ser melhores. A “informação” mais importante do caso, era óbvio no momento que as matérias foram publicadas, era que algo patentemente falso estava se espalhando pelas redes e um dos vetores era uma desembargadora que confiava demais em coisas do WhatsApp. Essa era a notícia.
Indo um pouco além, se os jornais não são apenas fábricas de URLs, mas têm um serviço público a prestar, eles deveriam fazer o máximo para não apenas dar “notícias”, mas informar de maneira mais clara possível o debate democrático. E aí entra a tensão entre “não revelar tudo na manchete para fazer o público entrar na matéria” (e ganhar $) e o mandato de ajudar as pessoas a separarem o joio do trigo nas redes sociais, onde elas quase sempre se informam por títulos, como sabemos.
Este último ímpeto precisa prevalecer, se nós jornalistas quisermos nos posicionar como bastiões contra os “fake news”. Em alguns casos, como neste último, não basta dar a informação certa no quarto parágrafo, só “narrar à distância” ou ficar no ela-disse-ele-disse, quando se sabe claramente que um dos lados está mentindo.
Para além disso, não há justificativa comercial mais. O Aos Fatos, com a manchete “Não, Marielle não foi casada com Marcinho VP, não engravidou aos 16 e não foi eleita pelo Comando Vermelho” teve mais de milhão de visualizações no fim de semana.
Entendo que essa mudança de lógica para títulos não é trivial, e a necessidade de fazer isso é algo bastante recente. Mas é urgente. Para algumas lições, podemos ver como os americanos estão lidando, ou tentando enfrentar, um cenário parecido.
Nos últimos dois anos veículos jornalísticos dos EUA começaram a colocar micro-checagens (ou a palavra “mente”) em manchetes sobre declarações sabidamente falsas do presidente Trump. O motivo é óbvio: quando a notícia mais importante é o fato de o homem mais importante do mundo mentir, o que ele falou é de fato secundário.
Quando Trump disse que “milhões de pessoas votaram ilegalmente no Twitter”, a manchete do Guardian era “Trump afirma que ‘milhões votaram ilegalmente’, mas não oferece qualquer prova”. Depois de Trump citar dados falsos sobre o comércio com o Canadá, a manchete do NYTimes era “Trump repete notícia falsa sobre o Canadá depois de admitir incerteza sobre valores.” Quando Trump tentou capitalizar por empregos criados, a manchete da Bloomberg era “Trump quer ganhar crédito por 5.000 empregos da Sprint que já haviam sido anunciados”.
Sei que há um risco de “editorializar demais”, mas é preciso escolher o lado da verdade, quando ela grita. E espero que a reação bastante negativa sobre a cobertura no fim de semana ajude a gente a achar formas melhores de não apenas dar a informação, mas saber o que é de fato “informar” as pessoas por aqui.
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Pedro Burgos é jornalista, ICFJ Knight Fellow e fundador do Impacto.jor.