O conceito de política prevê, em sua essência, a arte de governos de um estado constituído pelo povo em coletividade, tendo resguardada a heterogeneidade dos indivíduos e suas ideias. O povo ganha unidade em um corpo simbólico representante por um político, que assume a palavra e fala por e para eles. Mas na arte dos governos, a divergência, o contraditório e a desentendimento, diria Jacques Rancière, também lhe é constitutivo, porque se o conceito de povo nos leva à noção de identidade da polis, os cidadãos inevitavelmente são a expressão da diversidade. Falar para o povo em sua diversidade é um dos maiores desafio do político, porque não existe uma única linguagem, um único modo de expressão, nem um conteúdo automático para a escuta de fácil compreensão.
E quando é Lula que fala com o povo, onde estão mesmo a essência e a expressão de sua linguagem que parece hipnotizar aqueles que o escutam? Há uma psicologia dominante entre sua fala, a língua do povo e os ouvidos da multidão?
A presença de Lula no Sindicato dos Eletricitários de Foz do Iguaçu (Sinefi), na Tríplice Fronteira, neste 26 de março de 2018, marca a etapa final da Caravana Lula pelo Brasil. Como em outras cidades por onde passou, o ex-presidente esteve rodeado por correligionários, representantes políticos e sindicais do estado do Paraná e lideranças políticas da Argentina e do Paraguai, como o ex-presidente Fernando Lugo.
A fala do Lula, que se dirigia como um exímio orador entre tais lideranças e o povo, é a expressão de uma língua sem simulações nem ensaios, porque Lula não ensaia, brinca com o povo enquanto fala de história, economia, política externa, relações internacionais, ciência e tecnologia numa didática de fácil entendimento. Lula fala dos números como se fosse comerciante de feiras livres. Evidentemente nem todos diriam a mesma coisa. Há quem diga que ele não fala, resmunga; outros dizem ainda que sua fala não tem conteúdo, mas blábláblá.
O analista do discurso e historiador das ideias Marc Angenot analisaria este fenômeno pelo viés da retórica da incompreensão, quando nos levaria a pensar sobre os mecanismos retóricos que levam a fala do Lula a impressionar, emocionar, convencer seus ouvintes ainda que seu conteúdo se trate de generalidades. O pesquisador Carlos Piovezani tem se debruçado há década sobre esta questão, analisando a fala do Lula e suas mutações.
Ontem pude perceber bem de perto, enquanto o escutava, o funcionamento daquilo que o linguista dinamarquês Louis Hjelmslev definiu como plano de expressão e plano de conteúdo da linguagem. Tais planos conferem textualidade ao discurso no nível ético e no estético, o que lhe confere unidade do dizer e linearidade na construção do sentido. No discurso jornalístico, diríamos por exemplo que a principal função da linguagem é informar, esclarecer, dar conta de uma verdade noticiada, um acontecimento factual. Portanto, os olhares e os ouvidos do leitor-ouvinte se voltam para o conteúdo. Na música ou na poesia, por outro lado, o plano de expressão é bastante significativo tanto quanto ou mais que seu conteúdo, porque o compositor e o poeta trabalham no nível da criação estética e da representação em ambas as linguagens.
Lula não apenas conseguia falar para seus ouvintes como também os entretinha tocando, empurrando ou dando tapinhas nos ombros de seus companheiros de palco e de mesa para contar ao povo a narrativa de uma saga justiceira da qual se vê vítima e, por isso, tenta salvar sua honra e seu corpo ameaçados pelo sistema judiciário. Na descrição de tal saga, Lula toca em questões complexas como escravidão e dívida externa, elenca seus feitos pelo Brasil, combate o discurso de ódio, denuncia os atos de violência e o fascismo que tangenciam a democracia brasileira em risco de se desmoronar, após o golpe contra Dilma Rousseff. Como não acreditar em sua fala emocionada, se o povo que o escuta aos gritos e aplausos acaba de ver no palco o presidente do PT em Santa Terezinha de Itaipu com os olhos gravemente machucados por um adversário que não suporta a concentração de seus apoiadores?
O ex-presidente dirige-se ao padre pacifista e militante Idalino Alflen (Padre Pastel), dizendo: “Esse companheiro aqui foi um companheiro que foi evitar que um cara jogasse uma pedra aqui no meio de vocês, e o cara meteu a moto em cima dele e estragou o olho de nosso companheiro. Eu pedi que ele fosse na delegacia fazer um Boletim de Ocorrência porque estes canalhas, que não sabem conviver democraticamente c’a diversidade, não pode se meter a fazer política.”
Lula transita entre diversos temas, muda de assunto, percorre o palco como um protagonista de uma narrativa brasileira consciente de que o é porque o é: “porque eu sozinho fui o único presidente brasileiro que mais fez Universidades nesse país”. Orgulha-se por ter criado muitas Universidades e Institutos Federais, entre os quais a UNILAB e a UNILA devem produzir conhecimento e propiciar a integração do Brasil com os países irmãos africanos e latino-americanos. Em sua fala, destaca o fato de o país manter, por mais de três séculos, uma dívida histórica com os mais pobres e, sobretudo , com os descendentes e vítimas da cultura escravagista. “Eu tenho a UNILA como uma das coisas mais importantes que eu fiz enquanto presidente da república, porque eu queria fazer integração latino-americana”, disse enquanto era ovacionado.
No discurso político contemporâneo, a fala do representante tende a um certo ideário de coletividade, e o apelo ao pronome “nós” produz este efeito de distribuição das ações políticas entre um governo e seu povo. Assim, um governo se define por um corpo coletivo cujo representante ou aspirante ao cargo exerce ou exercerá um poder que lhe foi, em tese, legitimado pelo povo por meio do sufrágio universal. Em estados democráticos, por exemplo, o voto é um instrumento inviolável. No discurso político, a construção de frases com o pronome “nós” soa evidentemente menos egocêntrico, ainda que o porta-voz do povo se singularize numa figura qualquer escolhida para uma posição-sujeito-político.
Porém, Lula não é qualquer figura, nem um político brasileiro qualquer, ao falar com o povo a língua do povo, não a língua da velha política. Lula é fruto e personagem principal de uma narrativa histórica que ajudou a reconstruir coletivamente no meio de “nós”. Com o jargão vocativo [“companheiros e companheiras”] das esquerdas latino-americanas, ele fala em primeira pessoa [“Eu tenho a UNILA como uma das coisas mais importantes que eu fiz enquanto presidente da república”], localizando-se na singularidade de uma posição onde o povo o levou duas vezes e o levaria de novo se o desfecho dessa história não for uma tragédia jurídica.
Ele volta a tocar em seus companheiros, dá pausa às suas frases ricas de generalidades, brinca com seus ouvintes, volta a olhar nos olhos de alguns deles e seleciona uma jovem entre muitos estudantes da UNILA: “Você que é a Tainara? [Sim, sou a Nara.] Você que eu peguei no colo quando tinha 2 anos?” [É, sou eu mesma!]
Com estes gestos simpáticos, amistosos ou docilizados, diria a linguista Vanice Sargentini, como se ele estivesse falando com o vizinho de décadas ou uma afilhada adolescente, Lula constrói este lugar de intimidade e pertencimento de classe entre ele e o povo, seja através da linguagem corporal, das piadas prontas, seja por meio de verbos sem mesóclises, porém frases em português com “pitadas” de espanhol, fazendo sentido na boca e nos ouvidos daquela juventude latino-americana que estava ali para lhe agradecer.
A fala do Lula não é mais aquela dos palanques sindicais ou dos comícios da década de 1980, muito menos dos tempos de presidência, ainda que ontem seu discurso me levasse a uma distante memória de meus 10 anos de idade quando escutava na TV “Lula lá, brilha uma estrela/Lula lá, cresce a esperança”. Ainda que haja uma leve semelhança entre o formato de comício dos anos 1980 e 1990 e a Caravana Lula pelo Brasil, os tempos mudaram, os discursos também. Mas no plano de expressão de sua fala, há uma linearidade muito coerente entre o que diz o ex-presidente e o que entendem os brasileiros e os estrangeiros. Lula não fala com pompas nem com a arte da eloquência burguesa, embora tenha aprendido a falar com eles – os filhos das elites e os herdeiros da burguesia e da aristocracia para além da linha do Equador – em língua portuguesa na sua variante popular.
A fala do Lula ontem me foi o mais significativo exemplo de que a psicologia das multidões, de que tratava Gustave Le Bon, silencia a identidade dos indivíduos em um organismo unificador. Com a língua do povo, Lula então exerce este poder de unificar os indivíduos em sua heterogeneidade em uma alma coletiva contra o fascismo e o discurso de ódio, clamando-nos em um tom quase religioso a lutarmos pacificamente pela manutenção e pela inviolabilidade da ameaçada democracia brasileira. Ao lado do Lula, as figuras do apedrejado Padre Pastel e do ex-bispo católico Fernando Lugo, que também sofrera um golpe no Paraguai, em 2012, mantiveram latentes esta memória da Teologia da Libertação como uma metáfora anacrônica em nosso tempo.
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Jocenilson Ribeiro é professor adjunto da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA). É pesquisador na área de estudos do discurso e história das ideias, tendo feito doutorado em Linguística pela UFSCar.