Wednesday, 04 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1316

É impossível controlar os poderosos sozinho

Publicado originalmente no Medium.

Jornalistas brasileiros ainda não descobriram os benefícios da colaboração. Nós temos problemas para colaborar dentro de nossas redações, com colegas de outros veículos e no jornalismo transnacional

“É impossível ser feliz sozinho”, diz um verso de “Wave”, uma das melhores canções da Bossa Nova. O trecho da letra de Tom Jobim tem martelado na minha cabeça desde que comecei a pensar em como melhorar a colaboração no jornalismo investigativo brasileiro, tema da minha pesquisa na John S. Knight Journalism Fellowship, em Stanford. A associação entre o verso e o jornalismo pode soar rasteira, mas é verdadeira. O jornalismo investigativo é como a felicidade. É impossível controlar os poderosos sozinho. Os jornalistas brasileiros, entretanto, ainda não aprendemos a lição com a canção do Tom, nem descobrimos os benefícios da colaboração.

Durante meus primeiros meses em Stanford, entrevistei 20 repórteres e editores brasileiros, que dividiram comigo toneladas de histórias sobre a dificuldade de colaborar e sobre a predominância da competição predatória. Conversei com jornalistas que cobrem diferentes áreas e com experiência em grandes jornais, revistas e emissoras de TV, e também em pequenas start-ups, do Nordeste ao Sul do Brasil. Apesar de importantes exceções, ouvi principalmente histórias que mostram que enfrentamos problemas para colaborar dentro de nossas redações, com colegas de outros veículos e no jornalismo transnacional.

Um dos principais obstáculos é cultural. Muitos repórteres nem mesmo entendem por que deveriam colaborar. O estereótipo do detetive solitário predomina no jornalismo investigativo brasileiro. O padrão é o repórter que trabalha sozinho e até senta à parte dos outros.

Isso não significa que todo repórter e toda história tenham que ser colaborativos. Todos têm o direito de trabalhar sozinhos, e a competição saudável é fundamental. Ela te empurra para ir a fundo, a trabalhar com mais energia para pegar um documento antes de seus concorrentes, ou a insistentemente tentar uma entrevista antes que outro veículo consiga.

Mas há histórias que não podem ser contadas por um repórter sozinho. Ou são mais bem contadas se apuradas coletivamente.

Organizações jornalísticas são parcialmente responsáveis pela falta de uma cultura colaborativa. Algumas incitam a competição entre seus próprios repórteres, que passam a brigar pelo prestígio que o furo traz. Editores geralmente destacam o trabalho individual, criando uma atmosfera de ciúme e ressentimento entre suas equipes. Algumas editorias nem mesmo compartilham a pauta diária entre suas equipes, por competição.

A história mais pitoresca que ouvi foi de um repórter que percebeu que o colega evitava falar perto dele sobre suas ideias de pauta.

O trabalho individual é mais recompensado do que o coletivo. Tornar-se um colunista, por exemplo, uma das posições de mais prestígio dentro de uma redação brasileira, destaca o trabalho individual e não o coletivo. Não que haja problema nisso. O problema é não recompensar o trabalho coletivo.

A falta de espírito colaborativo seja talvez a razão por que tenhamos tão poucas unidades de investigação no país. Embora times de investigação sejam uma tendência bem-sucedida ao redor do mundo, os veículos brasileiros têm poucos exemplos duradouros, quando não puseram fim nos que se destacaram. Isso ocorreu, em alguns casos, por ação direta de editores que se sentiram ameaçados pelo sucesso das equipes de investigação e preferiram se preocupar mais com o “Game of Thrones” de cada redação do que com os benefícios para o jornalismo.

Os jornalistas brasileiros também criam barreiras entre eles. Uma das mais visíveis hoje é a divisão entre “grande mídia” e “mídia independente”. Os que trabalham para jornais, sites e emissoras de rádio e TV grandes são criticados por supostamente seus trabalhos não terem a mesma independência do trabalho de quem escreve para pequenos sites ou start-ups recém-abertas.

Na contramão, a grande mídia, arrogante e sem saber lidar com a competição, quase sempre ignora o que os veículos pequenos fazem.

Dos dois lados, esquecem que todos fazem jornalismo, geralmente com as mesmas qualidades e os mesmos defeitos. Preferem apontar o dedo em vez de focar em melhorar seu trabalho e ajudar colegas a fazer o mesmo. Precisamos focar no jornalismo e não na competição!

Em outro sintoma do ônus da má colaboração, grandes veículos publicam cada vez menos histórias de regiões distantes do país. No Nordeste, uma repórter reclamou para mim da falta de colaboração para se cobrir cidades do semi-árido pobre. Sem dinheiro para correspondentes locais, seu jornal, um dos maiores do Nordeste, simplesmente parou de cobrir o semi-árido.

Brasil afora, o mesmo se repete. Milhões de brasileiros de cidades pequenas vivem em desertos de notícias. O número assusta. O Atlas da Notícia, um projeto apresentado em novembro pelo Projor – Instituto para o Desenvolvimento do Jornalismo e pela agência de dados Volta Data Lab, revelou que 70 milhões de brasileiros vivem em cidades sem jornal ou site de cobertura local. Quantas parcerias entre pequenos e grandes veículos seriam possíveis para mudar este número?

A colaboração transnacional é um desafio ainda maior. Para quem não consegue colaborar nem com quem senta ao seu lado, trabalhar com gente que nunca viu pessoalmente parece impossível. Organizações jornalísticas não entendem os benefícios do jornalismo transnacional e deixam o preconceito prevalecer. O mais bem-sucedido consórcio de repórteres investigativos do mundo, o International Consortium of Investigative Journalists (ICIJ), por exemplo, tem apenas um integrante ativo no Brasil, o editor Fernando Rodrigues.

Felizmente, a Operação Lava Jato tornou imperativas algumas parcerias regionais na América Latina, como as que O Globo e a Folha de S.Paulo fazem parte. São bem-sucedidas exceções que deveriam ser seguidas.

Vamos a outros exemplos que ilustram quão amplas são as possibilidades da colaboração jornalística.

Um ano atrás, por exemplo, o gaúcho Zero Hora criou com sucesso uma unidade de investigação, também batizada de Spotlight, sob inspiração da famosa equipe do Boston Globe, e também focada em histórias locais.

Trabalho em equipe é a essência de qualquer produção de TV, e o Brasil tem tradição nessa área. As reportagens da TV Globo são frequentemente premiadas ao redor do mundo, em grande parte devido à gestão bem-sucedida da colaboração entre diferentes profissionais dentro de uma redação  —  em cobertura muitas vezes complexas.

Gestão profissional de pessoas é um dos ingredientes secretos do Jota, uma das start-ups de mídia de mais sucesso no Brasil, especializada na cobertura de Justiça. Entre outras ações, Felipe Seligman, um dos donos, produz semanalmente o Jotacast, um podcast gravado exclusivamente para os funcionários. O objetivo é engajar os repórteres e demais profissionais da redação de uma maneira divertida, com jazz e um roteiro bem-humorado, que destaque os sucessos individuais e coletivos.

Um bom exemplo de parceria entre organizações é a da Folha de S.Paulo com a Agência Lupa, uma agência de checagem de fatos. A Lupa publica semanalmente na Folha uma coluna de fact-checking.

Espírito colaborativo da Abraji deve inspirar jornalistas brasileiros a trabalhar mais de maneira coletiva. (Foto: Abraji)

O melhor exemplo de colaboração jornalística no Brasil, entretanto, é a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji). Nascida há 15 anos, após dois encontros, no Rio de Janeiro e em São Paulo, a Abraji foi criada devido à preocupação de repórteres e editores com a segurança dos jornalistas. Não era à toa. Naquele ano, o repórter Tim Lopes havia sido brutalmente assassinado por traficantes de drogas. Hoje, a Abraji promove um dos melhores congressos latino-americanos de jornalismo, luta pela segurança do jornalista e apoia o desenvolvimento profissional de repórteres e editores brasileiros em todo o país e no mundo.

A colaboração pode, portanto, dar frutos incríveis, e é essencial num mundo tão conectado como o nosso. Os veículos e os jornalistas brasileiros precisam entender que redações orientadas para o trabalho individual em vez do coletivo minam o bom jornalismo. O noticiário no Brasil já mostrou que os poderosos sabem bem dos benefícios de se colaborar para propósitos ilegais. Nós agora temos a oportunidade de fazer o mesmo para mantê-los sob controle.

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Guilherme Amado é repórter investigativo de O Globo. Recebeu os prêmios Esso e Tim Lopes de Jornalismo Investigativo. Atualmente, é fellow na John S. Knight Fellowships na Universidade Stanford, nos Estados Unidos, onde pesquisa soluções para melhorar a colaboração entre jornalistas investigativos.

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