Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O mecanismo nas capas das revistas semanais

A chegada das revistas semanais de circulação nacional Veja e Época às residências de seus assinantes com uma sobrecapa publicitária da série O mecanismo, produzida pela Netflix, expõe uma das muitas faces da confusão sentida hoje de modo generalizado na área da comunicação social. Profundas transformações incidindo tanto no jornalismo quanto na publicidade vêm cobrar de seus profissionais uma pressão constante por originalidade, seja em seu conteúdo, seja na busca por novos formatos. O uso da sobrecapa publicitária aproxima esses dois campos, almejando-se vantagens para ambas as partes: a revista cria um novo (e nobre) espaço publicitário, ampliando suas fontes potenciais de recursos; a publicidade, por sua vez, vê-se habilitada a operar no espaço de maior visibilidade da revista, além de se beneficiar de uma espécie de sentido do real emprestado pela linguagem jornalística de uma capa.

Entretanto, cabe considerar o risco da banalização de um espaço editorial tão relevante quanto a capa a partir de uma invasão enunciativa da publicidade. Não haveria, no emprego desse recurso, uma sobrevalorização do comercial à exposição jornalística do que haveria de mais relevante dentre os assuntos atinentes ao veículo? A força da capa como uma espécie declaração jornalística pode ser, inclusive, constatada na própria linha de comunicação promocional de Veja, que semanalmente utiliza a sua como cartaz, às vezes acompanhado de um título, outras falando por si só.

Na peça em questão, simula-se a capa factual de uma revista, recorrendo-se ao elemento que mais imediatamente gera seu reconhecimento: o logotipo. Mais do que identificar a revista que se encontra sob o anúncio, o uso de um padrão visual muito próximo àquele de fato utilizado pela revista quer jogar com a verossimilhança, estabelecendo um diálogo tácito entre o mundo conforme descrito (poderíamos até dizer criado) pelo seu conteúdo jornalístico e o seu simulacro. Na imagem, um mosaico de capas de edições anteriores – todas referentes à Operação Lava Jato ou a suas decorrências – é sobreposta por uma faixa no terço inferior da página. Nela, inscreve-se o título: “Você já leu muito, está na hora de assistir”. Então, abaixo: “do mesmo criador de Narcos e Tropa de Elite / O Mecanismo / Uma série original Netflix”. Ao lado, o rosto do ator Selton Mello sangra os limites da faixa. Por fim, chega-se no canto inferior direito ao logotipo de Netflix. A divisão entre o mosaico de capas e a faixa é marcada indicialmente pela representação de um rasgo na página.

Em época de tão acirrada discussão sobre a pós-verdade, o recurso da sobrecapa publicitária será sempre polêmico. Entretanto, os contornos específicos desse caso, no qual se costura o discurso publicitário com uma referência metalinguística ao próprio jornalismo da revista, tornam a situação particularmente problemática.

Se não faz sentido falar em objetividade ideal em discurso, é possível pensar que as ordens discursivas representadas pelo jornalismo, pelo entretenimento e pela publicidade se relacionam com a noção de real de maneiras distintas. É sobre essa diferença que a sobrecapa publicitária de O mecanismo propõe seu efeito persuasivo, fazendo uso de artifícios de intensa carga semântica (como o logotipo da revista, seu layout e, em especial, seu lugar proeminente no projeto editorial) para uma mensagem publicitária cujo mote trata, justamente, da coincidência dos conteúdos do jornalismo e do entretenimento. Nesse sentido, o título publicitário (“você já leu muito, está na hora de assistir”) leva a crer que, em substância, o que se lê na revista é o mesmo do que se assiste na série.

Ao lidar com tema sensível e passionalizado, O mecanismo evidentemente se cerca, de partida, por polêmicas. Porém, o deslocamento dramático da expressão “estancar a sangria” de seu real locutor (Romero Jucá) para outro (João Higino, personagem identificado com Luiz Inácio Lula da Silva) acrescenta carga explosiva à série. As implicações políticas de tal procedimento são óbvias – e não pretendemos nos aprofundar nessa leitura. Interessa-nos, entretanto, alguns desdobramentos desse episódio no que diz respeito à discussão até aqui empreendida.

Em entrevista, o diretor José Padilha desqualifica o questionamento acerca dessa troca de enunciador por duas vias. Uma delas se sustenta na frágil afirmação de que “estancar a sangria” constituiria expressão comum, de domínio público. Seu uso por parte de Romero Jucá não o tornaria seu proprietário. Nessa linha de argumentação, acaba por desconsiderar as camadas de significações que se somam ao substrato significante, como se o uso de palavras ou frases se pautassem tão somente em um sentido dicionarizado e a-histórico. Seria como mencionar “forças ocultas” na fala política esquecendo Jânio Quadros, ou como discursar que se tem um sonho (I have a dream) negando a imediata intertextualidade a um dos mais célebres pronunciamentos políticos – mesmo que Martin Luther King não tenha forjado a expressão em seu uso corriqueiro.

A segunda alegação de Padilha se fia na natureza assumidamente ficcional da série. Aqui, porém, todo o argumento publicitário expõe uma importante incompatibilidade, ao se frisar de maneira tão patente a verossimilhança do produto em relação à Operação Lava Jato. Torna-se imperativo reconhecer nesse momento que a decisão de se produzir uma série inspirada sobre episódio político de grande repercussão e ainda em curso impõe escolhas que não se restringem à esfera estética ou narrativa do material fílmico, mas que se erigem propriamente como escolha (ou ação) política. Assim, na trama das comunicações, entram em choque duas ordens de discurso: aquela da ficção e seu efeito de realidade (verossimilhança), reforçado pela publicidade; e aquela de Padilha, em seus argumentos contra as acusações de distorção de fatos, parcialidade política ou manipulação da história. Afinal, onde começam e acabam fato e ficção? E que efeitos de sentido tal embotamento das fronteiras entre o factual e o ficcional tem sobre uma leitura mais abrangente do produto midiático, que transborda o entretenimento para invadir a esfera política?

No fim das contas, confrontamo-nos com duas possibilidades de interpretação desse emaranhado comunicativo: ou há cinismo por parte da produção da série, ao sobrevalorizar a ficcionalização da narrativa no momento em que se vê confrontada com a tendenciosidade política do relato; ou a realidade narrada pelos veículos de imprensa, sugerida como idêntica em conteúdo à série, não passa de ficção. Poderiam ser elementos provocativos na construção estética ou no esforço promocional, mas parecem desastrados em face aos princípios do jornalismo.

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Guilherme Mirage Umeda é professor da ESPM/SP.