Texto publicado originalmente pelo objETHOS.
O rechaço aos veículos jornalísticos tradicionais, que compõem a chamada “grande mídia”, vem se intensificando em medida do recrudescimento político, característico do momento em que vivemos. Desde as jornadas de junho de 2013, que moveram milhões de brasileiros às ruas, a crítica sobre a concentração comunicacional no Brasil tomou novo fôlego. Ela promoveu a discussão sobre os prejuízos de poucas vozes dominarem o espaço de distribuição de ideias e ampliou o mapa do jornalismo alternativo e independente no país.
Em medida que o clima acirra, com o assassinato da vereadora do Rio de Janeiro, Marielle Franco, e a prisão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, aumentam também as tensões entre os campos que confrontam narrativas sobre a conjuntura. Peças de um jogo complexo, a apresentação e interpretação do acontecimento passa pelas disputas de sentido que, tanto o jornalismo tradicional quanto o alternativo, buscam travar.
A vigília em torno do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, no dia que precedeu a prisão de Lula, foi transmitida em tempo real pelas TVs e por veículos na internet. Da GloboNews à TVT, quem observou as transmissões pôde notar o distanciamento dos veículos tradicionais do calor dos fatos. Enquanto a GloboNews mantinha-se no ar com imagens aéreas do Sindicato dos Metalúrgicos para cobrir as repetidas interpretações de sua equipe de jornalismo, era possível assistir pela TVT no Youtube ou pela página da Revista Fórum no Facebook, para citar alguns dos veículos presentes em São Bernardo do Campo, segundo a segundo, o que acontecia ao longo da tarde de sábado, 7 de abril.
A priori, parece que as escolhas no modelo de cobertura se trataram de opções relativas ao caráter editorial dos veículos e aos posicionamentos adotados por eles ao longo da campanha que culminou com a prisão de Lula. Mas, outra mirada pode gerar mais considerações a respeito. A primeira é relativa ao rechaço a jornalistas de veículos tradicionais na cobertura da vigília em São Bernardo. Por que os movimentos sociais não toleraram a presença desses jornalistas? O que estava inscrito na ação de hostilizá-los? Um segundo ponto é o acirramento entre narrativas jornalísticas como reflexo do sistema midiático e da concentração comunicacional que ele deriva.
O jornalismo, entendido tanto como prática profissional quanto forma de construção de conhecimento, não está descolado de um contexto, não começa nem encerra em si mesmo. Pesa sobre ele o caráter do sistema midiático que, por sua vez, está condicionado a fatores estruturantes, como o sistema político e seus entrelaçamentos; os interesses econômicos das empresas do setor de comunicação; as leis que regulam os meios de comunicação; as condições sociais e culturais de determinados grupos e ambientes.
O sistema midiático nacional, ainda que periférico, não está isolado da lógica globalizada de mercado. Os grupos de mídia brasileiros também estão inseridos na dinâmica transnacional da mídia. Embora o país seja importante consumidor de conteúdos e formatos estrangeiros, a Rede Globo é a principal representante brasileira no fluxo internacional de bens-midiáticos. No âmbito da cobertura jornalística, tanto a TV Globo Internacional quanto a Record Internacional estão presentes no exterior. As duas emissoras, de fato, compõem o pequeno círculo de empresas/famílias que concentram a comunicação no Brasil, seja do ponto de vista da audiência, da propriedade cruzada ou da influência de grupos políticos.
É o que levanta a pesquisa MOM/Brasil (2017), realizada pelo Repórteres sem Fronteiras em parceria com o Intervozes. O estudo revela que “a concentração de audiência no Brasil é gravíssima, sobretudo no tipo de mídia mais consumido no país: a televisão. Nesse caso, ultrapassa 70% da audiência nacional concentrada nos 4 maiores veículos”, o que se amplia se considerarmos que o país tem dimensão continental. Sobre propriedade cruzada, a pesquisa mostra que os quatro principais grupos guardam “participação de mercado superior a 70% nos diferentes setores de mídia”. No que diz respeito à influência política, o estudo pontua que analisou 50 veículos pertencentes a 26 grupos ou empresas de comunicação; que 16 deles teriam outros negócios também no setor e que “além disso, 21 dos grupos ou seus acionistas possuem atividades em outros setores econômicos, como educação, financeiro, imobiliário, agropecuário, energia, transportes, infraestrutura e saúde. Há ainda proprietários que são políticos ou lideranças religiosas”.
Partindo da premissa de que a pluralidade de grupos que atuam no setor de comunicação não garante somente liberdade econômica, mas permite a distribuição de uma variedade de pontos de vista, equilibrando nosso contato com diversas visões da realidade, se pode sustentar que a concentração midiática, portanto, a falta de um ambiente democrático para a produção e interpretação dos fatos, é um dos fatores que impulsiona o acirramento social. Com o poder dos conglomerados de mídia incidindo sobre a produção e distribuição da narrativa do que acontece, o nó entre movimentos sociais e imprensa tende a ser cada vez mais apertado, promovendo respostas como o rechaço aos jornalistas de grandes veículos, conforme ocorreu na cobertura em São Bernardo do Campo.
A nota do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo traz uma posição equilibrada sobre a situação, mas colabora com a ideia de que se trata também do reflexo da postura editorial dos grande meios corporativos de jornalismo que dominam as condições de produção e distribuição do conteúdo jornalístico no país.
Embora na condição de trabalhadores, os jornalistas desses veículos representam as narrativas promovidas pelos locais em que trabalham. Corroboram para esse entendimento a participação do profissional na apuração, na checagem e na reconstrução dos fatos. Ainda que, como todo operário, os jornalistas também estejam submetidos às condições impostas pelas empresas, pelas rotinas laborais e pela precarização do trabalho, há um consentimento que promove as coberturas estereotipadas sobre movimentos sociais e versões simplistas sobre fatos complexos, que envolvem inúmeras posições e afetam variados públicos. Em um cenário conflituoso, de pressão social, a falta de equilíbrio na produção jornalística gera uma visão distorcida da realidade e uma resposta social condizente com o clima atual.
Por outro lado, é essa mesma concentração um dos fatores que promove a constituição de uma rede de veículos alternativos aos veículos tradicionais de comunicação ou independentes de grandes grupos econômicos. Eles se empenham na construção de narrativas que relevem o discurso de outros atores sociais que também se manifestam sobre os acontecimentos da atualidade. Diante da incapacidade dos principais veículos de cobrirem in loco a vigília pró-Lula e das suas escolhas diante da pauta, das fontes e de posicionamentos, os veículos independentes permitiram uma possibilidade de entendimento da realidade alheia ao “mais do mesmo”, ainda que com capacidade técnica reduzida.
Na percepção de que a pluralidade de ideias é essencial para a democracia, superar a concentração midiática é uma pauta consonante à resistência democrática que o período parece exigir. Ouvir mais vozes amplia nossa visão da realidade e pode ajudar o Brasil na construção de um caminho mais igualitário.
Clarissa Peixoto é mestranda no POSJOR e pesquisadora do objETHOS
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Referência:
INTERVOZES; REPÓRTERES SEM FRONTEIRAS. Media Ownership Monitor – MOM/BRASIL. 2017. Disponível em https://brazil.mom-rsf.org/br/ Acesso em 15. abr. 2018.