Texto publicado originalmente pelo objETHOS.
Jay Rosen, professor de Jornalismo da Universidade de Nova York, publicou há alguns dias em seu perfil no Twitter o que ele chamou de pontos-chave de sua palestra no International Journalism Festival em formato de thread.
(Parêntese 1: Thread, que em tradução livre significa ‘linha’ — no sentido de linha de discussão — foi uma das mais significativas atualizações que o Twitter fez nos últimos tempos, a meu ver. Além de incluir um texto mais longo de um mesmo autor, ela mostra também toda a discussão feita sobre o assunto, ou seja, os replies dados por outras pessoas. Pelo menos no campo do Jornalismo, tenho visto excelentes threads e o fato de Jay Rosen ter compartilhado sua palestra “em formato de thread” ratifica a relevância desse recurso).
Nos 29 tweets da thread, Rosen argumenta sobre como otimizar o jornalismo para a confiança. Citando o livro “Politics and Vision”, do filósofo Sheldon Wolin, ele atenta para a necessidade de transformar a confiança numa visão para a qual as redações têm que se mover. Segundo Rosen, temos que projetar as redações modernas para que seja mais fácil para as pessoas confiarem nelas, ou seja, para que construam um relacionamento estreito com os sites de notícias que valorizam. “Caso contrário, Facebook, Google e Apple News farão isso”, diz.
O professor prossegue citando uma provocação feita a ele em 2016 pelo também acadêmico Aron Pilhofer: “como seria uma organização de notícias otimizada não por cliques, por furos ou por tempo de permanência no site, mas por confiança? Rosen então começou a pensar sobre o assunto, mas logo encontrou resistência. Ele lembra que, para a professora Emily Bell, confiança é uma métrica ruim para o jornalismo de qualidade. O ponto de Bell é: o tabloide Daily Mail também é otimizado para confiança. E Rosen acabou concordando em parte, já que os apoiadores do Daily Mail realmente confiam no jornal, que é otimizado para essas pessoas. “Então, de certa forma, ele é otimizado para a confiança”, ponderou.
A thread segue com a mudança de percepção de Rosen sobre o assunto, de forma a completar sua argumentação. Ele lembra que os Republicanos confiam mais em Donald Trump como fonte de informação do que na grande mídia. O problema, então, é como combinar altos níveis de verificação que o jornalismo requer com a otimização para a confiança. Segundo o professor, isso acontece:
— Quando posso facilmente entender não só a notícia que li quando cliquei em seu site, mas a política de dados que comprei quando me tornei um assinante. Isso é otimização para a confiança.
— Quando sei que você vai reportar a denúncia e também a correção, quando houver.
— Quando clico no nome do repórter e encontro não só sua biografia e arquivo de matérias, mas de onde ele vem, o que o motiva.
— Quando vou no “sobre” do site e leio não somente sobre a missão e a propriedade do veículo, mas também sobre suas prioridades de reportagens, em que está empregando recursos e por que.
— Quando posso adicionar meu conhecimento ao seu para fazer um produto melhor… quando minha atenção não é captada, mas dada de forma espontânea.
— Quando você, como repórter, não apenas sabe qual é seu trabalho, mas o mostra… quando responde a críticas, e classifica as válidas das inválidas. Essa é uma habilidade vital numa redação.
— Quando educar pessoas com seu jornalismo é combinado com educá-los sobre jornalismo e como ele é feito.
— Quando transparência radical é combinada com diversidade genuína de modo a fazer algo melhor do que a objetividade na redação.
De acordo com Jay Rosen, quando todas essas coisas começam a acontecer e formam a cultura da redação, então estamos começando a otimizar o jornalismo para a confiança. O professor cita o jornal holandês De Correspondent, que está expandindo (com a ajuda de Rosen) para os EUA, e é pensado e desenhado — em termos de design mesmo — para atingir os pontos acima. “Cada vez mais a qualidade de nosso jornalismo irá depender da força de nosso relacionamento com as pessoas que mais usam e valorizam esse trabalho”, finaliza.
Quando a discussão começa
Entre as muitas respostas que a thread de Jay Rosen teve uma me chamou atenção: a do editor de Projetos Estratégicos do The Guardian, Chris Moran. Após tecer elogios sobre a argumentação de Rosen, Moran aponta um ponto problemático: para ele, confiança não é só uma métrica ruim, como disse Emily Bell. “Simplesmente não é uma métrica”. E a partir daí os dois começam um debate sobre o assunto.
(Parêntese 2: vejo com alguma frequência jornalistas de veículos de referência discutindo com acadêmicos no Twitter de forma bastante profícua. Neste caso específico, estamos falando de um editor de um jornal britânico de referência e um professor americano, que debatem abertamente suas ideias. Infelizmente não vejo isso acontecer entre jornalistas e acadêmicos brasileiros, talvez por arrogância de ambos os lados, me parece. No fim, todos saem perdendo com esse abismo entre Academia e mercado em nosso país).
De acordo com Chris Moran, “não há nenhum número que possamos criar ou rastrear que seja um proxy para o sucesso em torno da confiança e que possamos vincular a uma ação na redação. Tudo bem — muitas das coisas que você sugere são apenas boas ideias e higiene básica. Mas não temos uma métrica para medir o sucesso”.
Para o editor do The Guardian qualquer redação que busca aleatoriamente “god metrics” (algo como “métrica divina”) é um desastre — até porque não existe uma única métrica salvadora. Moran defende uma cultura forte em torno de grupos de métricas facilmente compreensíveis, de modo a discutir também o que não pode ser medido. “Nós não temos uma métrica de ‘qualidade’ no Guardian porque é impossível medir e porque todo o aparato editorial do jornal é projetado em torno de um senso orgânico e específico de qualidade”, afirma.
O professor Rosen diz que realmente não há uma métrica para sucesso, mas pondera que a renovação de assinatura, por exemplo, não é ruim (seguido de um emoji de sorriso). Ao que Moran responde: “Essa é uma ótima métrica. Mas não é confiança ou um proxy para confiança. Se pareço pedante, é porque muitas vezes há discussões sobre métricas para coisas que não podemos medir (confiança, impacto, etc.). Isso não é necessariamente um problema se a ideia básica for sólida e claramente desejável”. Rosen lembra que por isso mencionou a confiança como uma visão.
O desafio de medir o intangível
Esta “thread-aula” suscitou algumas reflexões, já que trata do tema da minha tese de doutorado, na qual inclusive entrevistei Chris Moran. Se faz sentido estruturar a redação em torno de uma visão para a confiança, como defende Rosen, é muito difícil encontrar uma forma quantitativa de medi-la, como argumentou Moran. E o mesmo raciocínio podemos aplicar para o impacto.
Medir quantitativamente valores intangíveis como confiança e impacto pode induzir as redações a um grande e perigoso erro. Sim, eu posso ter como indicador de confiança o número de assinaturas renovadas, mas ele não será tão assertivo quanto o comentário de um leitor dizendo que comprou um livro depois de ler sobre determinando assunto numa reportagem. Sim, eu posso ter como indicador de impacto o número de menções feitas a matérias na Câmara dos Deputados, mas dessas quantas se transformaram em uma lei que mudou a vida de determinada comunidade? Soma-se a isso o fato de que números bonitos e robustos de impacto e confiança podem facilmente virar peças publicitárias em favor do marketing do próprio veículo.
Assim, me parece bastante pertinente os pontos levantados por Rosen e Moran: a importância do impacto e da confiança como uma visão; e a cultura da redação que se estrutura a partir dessa visão. Além disso, é preciso acompanhar o ciclo qualitativo de uma reportagem, por exemplo: comentários, críticas, contribuições dos leitores, mudanças no status quo… Resumindo: relacionamento com a audiência, troca de conhecimentos.
Se não é possível fazer isso em todas as reportagens, é necessário seguir a “thread qualitativa” — para usar o termo da vez — em pelo menos algumas delas. Quanto mais recursos humanos, financeiros, de tempo e de investigação uma reportagem demandar, mais o veículo deve investir no ciclo qualitativo. Imagine o potencial transformador que isso pode ter na cultura de uma redação, que muitas vezes se vê atolada em números (cliques, pageviews, tempo de permanência, recirculação), mas com pouca capacidade para interpretá-los e dar a eles real significado.
**
Lívia de Souza Vieira é professora de Jornalismo no Ielusc e pesquisadora associada do objETHOS