Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Mídia, espetacularização e cinismo

O relatório ‘O estado das cidades do mundo 2004-05’, feito pela ONU, não causa o menor espanto ao constatar que as cidades latino-americanas têm as maiores taxas de violência sexual do planeta. Na verdade, diz muito pouco. Quase nada a quem simplesmente já se dispôs alguma vez a dar uma olhada nas ruas de sua cidade, nos pátios dos postos de gasolina e nas margens das rodovias, e menos ainda a quem se deu ao trabalho de investigar o assunto mais profundamente. Daqui a alguns séculos, nos livros de história e sociologia, nossos tempos certamente serão vistos com a mesma estupefação com que hoje enxergamos a barbárie da Inquisição.

A exploração sexual de crianças, adolescentes e adultos no Brasil salta aos olhos. Há três meses, quando concluí o curso de Jornalismo, escrevi um livro-reportagem chamado O olho da rua‘, tratando exatamente da prostituição. Como fiz o curso em Uberaba (MG), minha pesquisa foi toda feita naquela cidade. A crua realidade que constatei no Triângulo Mineiro, bem o sabemos todos nós, não é exclusividade da região. Ali, descobri o envolvimento da polícia, de diversas autoridades, da população e de personalidades notórias da cidade no centro da exploração sexual infantil e da prostituição. Não houvesse a conivência de tantos setores da sociedade, não seria possível, por exemplo, que uma conhecida radialista de Uberaba, há pelo menos 30 anos, arrebanhasse para seu antro – primeiro com dinheiro e posteriormente com ameaças – crianças pobres nas vilas ou na porta das escolas.

Sensacionalismo barato

Existe, na verdade, um caldo cultural de machismo, pobreza, alienação, corrupção e ignorância de todas as esferas da sociedade que permite a continuação deste estado de coisas. Um caso que ficou conhecido na cidade foi o de um ‘pai-de-santo’ que abusava sexualmente de menores sob pretexto religioso. Ao absolvê-lo das acusações, um juiz escreveu na sentença que ‘a vítima em foco procurou o réu, para fins religiosos, e durante a persecução do ato religioso (‘passe’) permitiu o toque em sua vagina, almejando a cura de uma suposta doença, câncer de útero’. O magistrado teve o despautério de afirmar ainda que ‘todo o procedimento foi circundado de intenções religiosas espirituais’. Infelizmente, muitas pessoas pensam que as meninas que se prostituem o fazem porque são safadas, contribuindo para isto nosso inextrincável machismo.

Assim, a sociedade se conforma em simplesmente afastar para as periferias a prostituição. Lugares onde nem a polícia se preocupa em fiscalizar. Lugares distantes do centro e das moradias, onde os homens podem descarregar uma energia que não seria bem aceita dentro dos lares.

A mídia, cegamente inserida nesse contexto, encontra um prato cheio para o sensacionalismo barato e extremamente nocivo. O caso do pai-de-santo, por exemplo, rendeu a um jornal diário local a seguinte manchete ‘Pai-de-santo tira pomba-gira de dentro de vagina de mulher’. As letras garrafais na primeira página do jornal, entretanto, não explicavam que a mulher, na verdade, era uma criança de 9 anos de idade. Além disso, com o intuito de venderam mais exemplares, volta e meia fotos de mulheres seminuas ilustram as matérias sobre o assunto.

Atraso alarmante

Engana-se quem pensa que a exploração vulgar de um tema tão sério seja feita apenas por jornalecos. Em total desrespeito ao Artigo 228 do Código Penal, favorecimento da prostituição, e ao Artigo 230, tirar proveito da prostituição alheia, jornais que se pretendem sérios anunciam em seus classificados os prazeres das ‘chácaras’, das ‘casas de massagem’ e de tantos outros prostíbulos, indiferentemente ao nome eufemístico que lhes é dado. Mesmo sabendo que esses locais, além de submeterem adultos ao trabalho escravo, exploram sexualmente crianças e adolescentes.

Nasce daí minha revolta quando esses mesmos veículos, ao ‘descobrirem’ casos de escravidão sexual, trazem ao público matérias moralistas, com um tom de indignação, sobre um fato que já conheciam. O poder público permanece inerte, abobalhado e corrupto. Desde os promotores locais – pois é no município que o cidadão percebe mais de perto a catástrofe social – até as mais elevadas esferas. Basta lembrar que a CPI da Exploração Sexual, anunciada com estardalhaço, não resultou em absolutamente nada.

A imprensa, em vez do falso puritanismo, da espetacularização e do cinismo com que normalmente cobre os acontecimentos relacionados à exploração sexual e à prostituição, deveria se imbuir de um olhar mais crítico, que desse conta do alarmante atraso social.

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Jornalista