Um dos méritos das transformações ocasionadas pela revolução tecnológica internacional, com suas origens ainda na segunda metade do século XX e impactos em diferentes setores sociais, é o movimento que vem se constituindo nas últimas duas décadas de pensar o mundo do jornalismo, motivado por múltiplos interesses e nem todos antagônicos. O jornalismo vem ocupando uma posição de destaque, enquanto sujeito e objeto, convergindo reflexões e investigações por um conjunto simultâneo de atores sociais: profissionais, pesquisadores, acadêmicos, empresas jornalísticas, de nacionalidades distintas.
Não é a primeira vez em sua história que isso ocorre. Estudiosos mostram que na segunda metade do século XIX e na primeira metade do século XX, movimento similar em pensar o jornalismo aconteceu, com as devidas proporções e particularidades, e foi interrompido pelos movimentos nazista e fascista antes da Segunda Guerra Mundial, e da guerra fria liderada pelos EUA, depois de 1945.
Associado à revolução tecnológica internacional, pondere-se, aqui, também a crise no modo de produção capitalista, datada sua origem nas últimas décadas do século XX, assim contemporâneo à revolução tecnológica. Seus desdobramentos avançaram sobre o modo de produção do jornalismo: desmonta-se o modelo de jornalismo industrial e avança para o jornalismo pós-industrial, porém de forma difusa, instável e experimental em um terreno movediço.
No contexto atual das transformações do jornalismo e do desequilíbrio estrutural dos seus pilares, empresas tradicionais buscam formas de garantir sua sobrevivência, novas formas de financiamento são experienciadas, profissionais testam alternativas para o exercício da profissão e iniciativas jornalísticas emergem no mundo digital. A narrativa, por sua vez, incorpora a tecnologia alterando e alternando formatos e plataformas, outros agentes ingressam no processo de produção de conteúdo informativo agregando expertises, o público deixa de ser uma abstração na cadeia reprodutiva do jornal, exploram segmentos e nichos. Enfim, o impacto gera múltiplas manifestações dissociadas ou não.
Um olhar macro e distante enxerga apenas a busca pela sobrevivência, não do jornalismo, mas das empresas e dos profissionais. Já um olhar mais próximo, micro, vislumbra o jornalismo como o cerne da questão e um respeito a suas deontologias e práxis. É a separação do joio do trigo. No modelo industrial a concepção de jornalismo acabou difundindo-se ao modelo de gestão das empresas de comunicação que viabilizavam sua prática, mas na verdade essa relação não é vital à existência do primeiro. Mesmo no paradigma do jornalismo industrial coexistiram outros modelos de gestão, como por exemplo o da imprensa alternativa. Logo, não foram as empresas de jornalismo do modelo industrial que geraram o jornalismo. A quebra dessa relação simbiótica, a disjunção, pode ser vista como libertadora para o jornalismo.
Os pesquisadores canadenses Jean de Bonville e Jean Charon (2016) concebem as transformações do jornalismo como desencadeadas pelo desequilíbrio na relação entre os cinco mercados (fontes, consumidores, anunciantes, profissional e financeiro), ocasionado pela hiperconcorrência e pela Internet, abalando a estabilidade dos pilares de sustentação da então prática do jornalismo, em um efeito em cadeia.
Que o jornalismo é essencial a uma democracia é notório. A pergunta que suscita é como financiá-lo? Como viabilizar sua consumação neste novo paradigma? Como atrair o interesse público? E para qual público?
Ao recortar a reflexão no jornalismo local, regional e praticado fora do eixo Rio de Janeiro – São Paulo – Brasília, remete-se além das considerações elencadas acima, pontuar também as particularidades desse jornalismo periférico no Brasil, inserido no mesmo contexto. Ressalta-se aqui que ele não é menos importante tampouco menos necessário, sobretudo em um país tão extenso, assimétrico, desigual e constituído por diversidades sociais, culturais, econômicas e políticas como o nosso.
Considerar o jornalismo nesse espaço fora dos grandes centros urbanos é abrir o olhar para uma multiplicidade de veículos, distribuídos geograficamente de acordo com as demandas regionais, locais e com forte lastro político: pertencentes, financiados ou apoiados por grupos políticos, instituições políticas ou políticos individualmente. Aqui são incluídos também veículos sediados em capitais, de pequena escala. Por isso o desafio e a necessidade da academia e dos pesquisadores em estudar essas mídias.
Há dois movimentos que envolvem os jornais regionais e locais de norte a sul do país, em particular, que eu gostaria de destacar. O primeiro, iniciado na primeira década do século XXI, corresponde à expansão rumo ao interior de veículos das capitais e dos grandes centros, movidos pela iniciativa em fortalecer a empresa enquanto negócio. Deslocam-se em busca de público em potencial, de anunciantes e de demandas, sejam sociais, política ou econômicas. Assim, o processo de globalização tecnológica redirecionou o tratamento dado a essas mídias jornalísticas locais e regionais, conduzido em parte pela regionalização da mídia mainstream, como aponta a pesquisadora Sônia Aguiar (2016), da Universidade Federal de Sergipe, levando os veículos locais a ingressarem na lógica dos conglomerados. Na competição pelo mercado das localidades, esse movimento impulsionou veículos de pequena escala, de então gestão familiar, a empreenderem e remanejarem na lógica do conglomerado, como por exemplo concentrar rádios e jornais, ou fundirem-se aos conglomerados via ações, mas nem todos sem perder o controle majoritário da sua empresa, em um primeiro momento. A mudança de comportamento foi consagrada pela facilidade das Tecnologias de Comunicação e Informação, propiciando as redes integradas. Ou seja, barateamento do custo de produção para diversas plataformas interligadas por uma rede.
A outra consideração que envolve os veículos de pequena escala, compreende ao Decreto Nº 6.555 de 08 de setembro de 2008, do Governo Federal, o qual retirou a concentração do poder central das verbas publicitárias e redistribuiu para as três instâncias governamentais (municipal, estadual e federal). Com isso, passou-se a valorizar a estratégia regionalizada das peças publicitárias das ações dos governos, pulverizando a verba para a imprensa local e regional. Com mais dinheiro entrando via publicidade, os veículos expandiram e empreenderam também na lógica dos conglomerados e concentração de mídias.
O problema é que na segunda década do século XX essa imprensa de pequena escala também sofreu os abalos da crise do modelo de gestão industrial do jornalismo, desencadeando demissões, fechamento de veículos e redução estrutural das redações. Semelhante às empresas de jornalismo dos grandes centros, as empresas buscaram apenas transpor o modelo de gestão anterior para o modelo que começou a se constituir, na expectativa de manter a mesma equação com lucros. Com isso, a medida foi cortar custos, entre os alvos mais atingido estava o dos profissionais jornalistas.
Ocorreram demissões coletivas e individuais sucessivas, com menos profissionais trabalhando na produção de conteúdo para uma diversidade de plataformas, acentuando a precarização e a flexibilização do trabalho: mudam as formas de contratação, ampliam os estagiários, diminuem as remunerações salariais e a denominação dos cargos e postos de trabalho.
A simples transposição do modelo antigo não vem se despontando como a melhor alternativa, porque dificilmente atende conjuntamente as expectativas dos gestores, profissionais e público. Revestidos com o discurso de incorporação da tecnologia na organização do trabalho e na constituição de um “novo” modelo de gestão, o argumento sustenta a formação da redação digital, constituída por “profissionais digitais”, que sintetiza o multitarefa. Isso só vem impactando na qualidade do produto e consequentemente do jornalismo, suplementando a crise de credibilidade que a imprensa e empresas jornalísticas estão enfrentando.
Alguns jornais fecharam não apenas a versão impressa, mas online também, outros ainda continuam apostando nessa mesma fórmula e eliminam ainda mais os custos essenciais para sua longevidade enquanto empresa jornalística: profissionais e cobertura jornalística. Contudo há aqueles que estão testando e inovando em novas fórmulas, entre elas cooperativas e sociedade anônima. O interessante é que a experimentação do mercado não se restringe a uma região, pesquisas sinalizam o mesmo fenômeno em diferentes regiões do país: Norte, Sul, Nordeste, Sudeste e Centro Oeste. O mesmo ocorre por parte de estudos desenvolvidos no âmbito acadêmico e nas entidades que representam a categoria. É nesse sentido que ressalto o jornalismo como cerne das discussões, seja por parte das empresas, da academia, de grupos de pesquisa e programas de pós-graduação, de associações e federação que representam a categoria dos jornalistas. Essas alianças precisam ser fortalecidas e estreitadas.
Os desafios tecnológicos e de gestão não estão localizados apenas na compreensão do mercado, de suas configurações e reconfigurações. Também chamo a atenção para os mais de 300 cursos de formação em Jornalismo espalhados pelo país. Ao formar jornalistas, não formamos apenas mão de obra com competência e perfil multitarefa, remanejando a lógica do modelo anterior, que serão submetidos a uma empresa ou negócio com estabilidade empregatícia durante anos, com ou sem contrato formal de trabalho. O objetivo é formar profissionais com conhecimento em jornalismo a ser aplicado em um cenário em transformação, que incorpore a tecnologia no exercício do jornalismo, com competência para absorver uma sociedade ou comunidades com demandas latentes. Propõe-se pensar como as inovações tecnológicas equiparam o jornalismo a fim dele poder desempenhar um papel melhor em uma sociedade em transformação, mudando a cada dia mais rapidamente. Nesse sentido, os cursos de formação devem: estimular a proposição e aplicação de ideias e projetos jornalísticos inovadores que atendam de fato nossas demandas sociais e geográficas; testar a tecnologia na aplicação de formatos de narrativas jornalísticas para melhorar a compreensão do acontecimento por um público definido e viabilizar seu acesso; estudar a região onde o curso de formação está sediado para pensar como o jornalismo em pequena escala pode atender as demandas da localidade e suas particularidades, com o propósito de participar do desenvolvimento local; reportar as desigualdades e assimetrias locais fortalecendo a polifonia de vozes presentes na sociedade em posições sociais distintas. Encerro, que não se conota em uma formação empreendedora para resgatar a gestão empresarial, mas um conhecer dos saberes jornalísticos (saber profissional), comprometido com suas deontologias e com o exercício da cidadania e formação cidadã.
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Paula Melani Rocha é jornalista e professora da Universidade Estadual de Ponta-Grossa, no paraná.
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Referências
AGUIAR, Sônia. Territórios do jornalismo: geografia da mídia local e regional no Brasil. Petrópolis: Vozes, 2016.
CHARRON, J.; BONVILLE, J. Natureza e transformação do jornalismo, Florianópolis: Ed. Insular, 2016.