Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Edir Macedo contra as True News

Se a ficção foi classificada por críticos de cinema respeitados como “constrangedora”, a realidade renderia, no mínimo, um excelente documentário. Vejam que premissa interessante: um bispo milionário prepara um exército — de dinheiro e de pessoas — para levar aos cinemas a “história” de sua vida. Mas sabe que, neste árido deserto, encontrará muitos inimigos. O pior de todos se chama jornalismo sério. Para fazer contraposição à expressão da moda (fake news), vamos chamá-lo de true news.

O bispo, um cara com experiência em mídia e comunicação, sabe que, ainda que o inimigo levante muita poeira no momento, a longo prazo, se ele usar as armas corretas, a História (essa sim, com H maiúsculo e sem aspas), pode elevar sua cinebiografia ao status de grande sucesso de bilheteria e de crítica. Dúvida? Quem garante a prevalência do jornalismo cultural sério daqui décadas diante de amontoados de links que buscadores como o Google ranqueiam com seus critérios próprios — envolvendo lucro, claro?

Essa deve ser a aposta de Edir Macedo, mas se você não sabe do que estamos falando, vamos voltar alguns anos para trás e lembrar que, em abril de 2016, o filme “Os Dez Mandamentos”, produzido pela Record TV de Edir Macedo, desbancou “Tropa de Elite 2” e se tornou a maior bilheteria da história do cinema brasileiro, com quase 11,5 milhões de bilhetes vendidos. Um recorde que, segundo a imprensa, foi atingido com “salas vazias” e parte dos ingressos comprados em dinheiro e distribuídos gratuitamente.

Com este baita sucesso no portfólio, não foi difícil convencer uma porção de exibidores a deixar reservadas muitas salas de cinema para a estreia de “Nada a Perder”, que já chegou nos cinemas, em março deste ano, batendo o recorde da produção anterior, agora com 4 milhões de ingressos vendidos antes do filme estrear. A imprensa, no entanto, não tardou para defender as true news. O portal IG afirmou que a Igreja Universal estava doando ingressos em supermercados. Tony Góes, da Folha de S.Paulo, afirmou que a Igreja fechou salas de cinema alegando lotação máxima quando, na verdade, ninguém estava vendo o filme. Jornais, revistas e sites foram às salas de cinema para constatar que pouquíssimos das centenas de lugares disponíveis estavam ocupados.

Mas o bispo não desistiu da batalha. Primeiro, comprou espaço comercial na própria TV Globo para anunciar seu filme. Dono da concorrente Record TV e de portais como o R7, não demorou para seu jornalismo entrar em ação. No R7, uma matéria intitulada “Nada a Perder: um filme que incomoda muita gente” afirma que reportagens estariam usando “dados manipulados” para espalhar o preconceito contra o filme. Assinada por Vanessa Lampert, que escreve em primeira pessoa, diz que “não é possível que eu tenha sido a única a notar” a manipulação “descarada” das matérias dos jornais, que ela cita um a um. Vanessa diz que foi a imprensa que criou o “factóide, popularmente chamado de fake news” contra Os “Dez Mandamentos”, em 2016. Ridiculariza o recorte analisado pela grande mídia, num texto que mais parece depoimento de rede social (“amigo, tente fazer uma pesquisa com esses dados em qualquer instituto de pesquisa sério e você será escorraçado”), sem contrapor com dados confiáveis e pesquisa embasada, criticando o vazio, mas entregando nada em troca. E termina com uma pérola, que por fim comprova que a bilheteria alcançada não é espontânea de público: “Vamos apurar direito, coleguinhas? Como podem publicar a matéria sem antes entender o comportamento do segmento? Comprar livros para doar a parentes, amigos e até desconhecidos é prática comum não só entre membros da Universal, mas de várias outras igrejas (já vi uma senhora na livraria com uns dez exemplares do livro de um padre, dizendo que gostou e estava comprando para doar), a pessoa quer para os outros o que fez bem para ela. É natural que isso aconteça com relação aos ingressos do filme. E me enoja ver quem recebe ingressos (comprados com esforço e doados com amor) e enxerga nisso uma ‘comprovação’ de fake news. Mas a culpa é da irresponsabilidade de quem, tendo o papel de informar, apenas espalha e alimenta preconceito.”

O episódio seguinte desta saga foi no portal IMDB, o mais acessado e o maior banco de dados de cinema no Ocidente. É utilizado diariamente por críticos e repórteres para consulta de dados de bilheteria, curiosidades sobre os filmes etc. Mais importante ainda, o IMDB se tornou um banco de dados acessado de críticas sobre filmes que estão ou estiveram em cartaz. Segundo o site Cinepop, a cinebiografia de Edir Macedo chegou a atingir a pontuação mais alta no IMDB durante uma semana. Porém, o portal começou a receber diversas denúncias de que estas críticas estariam sendo escritas por robôs, e reduziu, então, de 150 para 7 o número de textos sobre o filme, derrubando a média para 7.5. A matéria cita ainda fonte do UOL que diz que os textos parecem ter sido escritos em inglês, mas por brasileiros.
O jornalismo cultural opinativo também entrou na batalha a favor das true news. Críticos analisaram a obra sob o ponto de vista estético, narrativo e técnico. O crítico Roberto Sadovski, por exemplo, chama o filme de “peça de propaganda” constrangedora. Afirma que é um filme que “prega aos convertidos” pois não entrega informação extra alguma para quem já conhece a figura do bispo. Diz que o único ponto positivo da obra talvez seja a reprodução da época para justificar os R$ 25 milhões de orçamento, bem alto para os padrões brasileiros. “O que espanta é a falta de zelo com o texto e com a direção de atores, que em sua maioria reproduzem aqui o ‘padrão Record de qualidade’, e a total ausência de uma progressão narrativa: Os “Dez Mandamentos” ao menos tinha a desculpa de condensar centenas de capítulos de uma novela em duas horas. “Nada a Perder” é o que acontece quando se tem muito dinheiro na mão e nenhuma ideia, a não ser usar a sala de cinema como extensão do templo”.

Na batalha do fake contra o true, a imprensa fez seu papel de registrar seu lado, que será usado no futuro por livros, documentários e estudos sobre o cinema brasileiro. Mas outros episódios desta saga ainda virão. “Nada a Perder” é a primeira parte de uma trilogia, com duas peças previstas para estrear em 2019 e 2020. Se este filme, que teve cenas gravadas em Jerusalém, Nova York e Joanesburgo, já “quebrou recordes”, imagine então qual será o próximo milagre do bispo.

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Franthiesco Ballerini é escritor, jornalista e autor do livro ‘Jornalismo Cultural no Século 21’.