Parte da blogocúndia científica – e similares – tupiniquim ficou irada [‘Cara Ruth de Aquino‘; ‘Pesquisas científicas me fazem rir!‘; ‘A Ciência e o óbvio‘] com texto da jornalista Ruth de Aquino no sítio web da revista Época. Não sem razão. Aquino quis tratar a respeito da qualidade das pesquisas científicas, mas acabou metendo os pés pelas mãos.
Já no título, a provocação: ‘O besteirol na ciência é melhor que no Senado’ [ver aqui]. E parte para uma generalização perigosa: ‘Uma receita de riso certo é ler sobre pesquisas `científicas´ de universidades respeitadas’. Ela faz uma ‘análise’ de quatro casos e depois cita a premiação IgNobel para sustentar que os casos são típicos, e não uma exceção.
Abaixo comento, parágrafo a parágrafo, o ‘besteirol’ de Aquino.
‘Com tanta desgraça na política, uma receita de riso certo é ler sobre pesquisas `científicas´ de universidades respeitadas. Conclusões: o cérebro masculino vê mulher de biquíni e sem rosto como objeto. Canhotos vão pior na escola – e os mais desajustados são as meninas ambidestras. Genes gays excitam as mulheres. Brincadeiras fazem bem às crianças. Resultados variam do óbvio ao inverossímil e preconceituoso. Como se arruma patrocínio para tanto besteirol?’
Bem, a generalização com ‘receita de riso certo’ já foi comentada. Agora, ela diz ‘variam do óbvio’ – leia o post ‘Mas isso eu já sabia!’, de Kentaro Mori, no blog 100nexos, sobre a questão do óbvio [‘Mas isso eu já sabia!‘] – ‘ao inverossímil’ – qual o problema de ser inverossímil, desde que seja verdadeiro? Aliás, desafiar o senso comum é um papel importante das pesquisas – é inverossímil que a passagem do tempo se altere com a velocidade de deslocamento? Pois é, na conclusão da teoria da relatividade é inverossímil que elétrons se comportem como ondas? Pois é, na conclusão da teoria quântica – ‘é preconceituoso’ dizer que canhotos se saem menos bem nos estudos? Se isso é a realidade, por que não se deve dizer que isso ocorre? Até para, entre outras coisas, procurar corrigir isso. Homens ganham mais do que as mulheres para um mesmo serviço; negros têm um grau de escolaridade menor do que os brancos. Dizer que algo é de um determinado modo não significa dizer que esse algo deva ser assim. Preconceito seria tentar usar essas conclusões para embasar uma opinião a respeito da superioridade ou inferioridade de uma determinada classe social ou forjar resultados para forçar essa conclusão.
Nem tragédia, nem comicidade
‘Se uma mulher olhar a foto de um homem musculoso, de sunga e sem cabeça, provavelmente também vai encará-lo como objeto. Mais criativos ainda são os desdobramentos da pesquisa. Segundo a psicóloga Susan Fiske, da Universidade Princeton, deduz-se com esse estudo que `um patrão pode beneficiar certas companheiras de trabalho em detrimento dos demais funcionários da empresa, dependendo de como ele idealiza aquele corpo´. Quanto tempo perdido.’
Sim, pode ser que ocorra eventualmente da mulher apresentar reação recíproca. E qual o problema? O que isso depõe contra a qualidade da pesquisa? Será que se as mulheres encararem homens sem cabeça como objeto isso fará com que seja falso que os homens vejam corpos de mulheres como objeto? Como é que ela considera tempo perdido uma possível implicação de que pode haver uma discriminação sexual no ambiente de trabalho? Isso é sério e demanda investigação.
‘Como o novo presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, assina todos os documentos com a mão esquerda, é no mínimo inoportuna a pesquisa recente afirmando que `os canhotos vão pior na escola porque são uns desajustados com Q.I. mais baixo´. Foi um estudo amplo, com 10 mil crianças, da Universidade de Bristol, na Inglaterra. As garotas se saem pior ainda porque, segundo os pesquisadores, `não existe um senso de superação entre as meninas que não escrevem com a mão direita´. E os ambidestros não desenvolveriam todas as habilidades motoras. Como sou mulher, ambidestra e escrevo só com a mão esquerda, esse estudo poderia ter arrasado minha auto-estima. Seria trágico se não fosse cômico.’
O fato de Obama ser canhoto não tem nada a ver com isso. Ou as pesquisas com células-tronco embrionárias eram mesmo inoportunas pelo fato do então presidente George W. Bush ser um cristão fundamentalista? Além disso, a senhora Aquino desconhece o que significam médias. Se os homens, na média, são mais velozes do que as mulheres, não quer dizer que toda mulher é mais lenta do que qualquer homem. Uma campeã olímpica é certamente mais rápida do que eu. Mesmo uma atleta de fim de semana provavelmente é mais veloz. Não há nenhuma tragédia (a não ser a ignorância da jornalista a respeito de estatísticas) nem comicidade. Canhotos vão menos bem nas escolas – o que isso tem risível? Mostra exatamente a necessidade de ajustes no sistema escolar para que os canhotos possam ir tão bem quanto os destros.
O que todo mundo sabe
‘Rapidamente surge outra pesquisa em que não consigo me encaixar. Na Universidade de Queensland, na Austrália, comprovaram que genes gays enlouquecem as mulheres. Como assim? Homens gentis e sensíveis atraem mulheres, isso todo mundo sabe, para que pesquisar? E vice-versa. Mas gentileza não é uma característica feminina nem homossexual. O pesquisador Brendan Zietsch foi além. Pesquisou 5 mil gêmeos de ambos os sexos para concluir que seriam mais atraentes os irmãos de homossexuais ou lésbicas. A que se prestam as estatísticas…’
Óbvio? É óbvio que mulheres prefiram homens com trejeitos efeminados? Por que Schwarzenegger despertaria tanto interesse feminino então? Aliás, as repórteres Marcela Buscato e Marianne Piemonte, que fizeram reportagem [‘Questão de jeito‘] para a mesma Época sobre o tema discordam. Dizem elas: ‘Torquatto não se encaixa no senso comum de que as mulheres preferem o tipo galã machão.’ E se a sra. Aquino tivesse lido a reportagem publicada no próprio veículo em que trabalha, entenderia o contexto da pesquisa: entender a origem de possíveis fatores genéticos no comportamento homossexual: ‘A idéia circula entre acadêmicos há dez anos. E é apenas uma das teorias que tentam explicar como supostos genes que determinariam a homossexualidade teriam evoluído. A questão intriga os cientistas porque desafia as leis da seleção natural.’
Convite ao analfabetismo
‘Uma pesquisa inédita, da Faculdade Albert Einstein de Medicina, em Nova York, comprovou que crianças que dispõem de 15 minutos de intervalo para brincar na escola são menos bagunceiras e aprendem mais que as crianças confinadas o dia inteiro numa sala de aula. Esse estudo envolveu mais de 10 mil crianças entre 8 e 9 anos. Para provar o que todo ser humano já sabe. Que reter por muitas horas alguém de qualquer idade numa sala, de aula ou conferência, prejudica a concentração e a absorção de conhecimento.’
Óbvio? A sra. Aquino certamente não leu o alerta no estudo: 30% das crianças tinham pouco ou nenhum intervalo; 40% das escolas incluídas no estudo haviam reduzido o tempo de intervalo. Além do fato de professores muitas vezes punirem os alunos, impedindo-os de irem ao recreio. Isso dentro de um contexto em que os pais americanos estão paranóicos com a segurança dos filhos e os enchem de compromissos escolares e acadêmicos para ocuparem seu tempo.
‘Quem acha que essas pesquisas estapafúrdias são exceção deve acessar este link. O Prêmio IgNobel (ignóbil) é uma paródia auto-explicativa do Nobel. Eis as conclusões hilárias de algumas pesquisas em 2008: pulgas que vivem nos cães pulam mais alto que as que vivem nos gatos; a Coca-Cola é um espermicida eficiente; dançarinas de strip tease ganham mais dinheiro nos períodos de fertilidade; medicamentos falsos caros são mais eficientes que medicamentos falsos baratos; a comida é mais saborosa quando soa mais atraente; montes de fios ou de cabelo inevitavelmente enroscam.’
Continuam a ser exceções, como dito a respeito de generalizações. Essas listas representam um universo ínfimo do total de pesquisas científica realizadas ao longo de um único ano. Os 13 países com maiores números de pesquisas publicadas, entre 1996 e 2006, produziram em conjunto mais de 2,9 milhões artigos [‘Thomson Scientific Analyzes Ten Years of Influential Research to Rank Top One Percent of Scientific Papers‘]. Parte das premiações do IgNobel não vão para pesquisas científicas, mas sim para pseudo-ciências – como o livro de Däniken, Eram os deuses astronautas?. Além disso, o objetivo expresso da Improbable Research (organizadora do IgNobel) é ‘to make people laugh, then make them think. We also hope to spur people´s curiosity and to raise the question: How do you decide what´s important and what´s not, and what´s real and what´s not – in science and everywhere else?’ (‘fazer as pessoas rirem e, então, pensarem. Esperamos ainda promover a curiosidade das pessoas e trazer a questão: como você decide o que é importante e o que não é, o que é real e o que não – nas ciências e em todo o resto?’) [‘What is Improbable Research?‘]. Ela não tem como objetivo avaliar a qualidade dos trabalhos laureados – tanto é que muitos ganhadores fazem questão de estar presentes à cerimônia de entrega. Mas vamos fingir que o IgNobel fosse um indicador de qualidade ou falta dela em um trabalho científico. A IR distribuiu cerca de 110 prêmios entre os anos de 1996 e 2006 – nem todos nas áreas científicas e muitos deles para pesquisadores que não estão em ‘universidades respeitadas’. Multipliquemos esse número por mil – 110 mil trabalhos. Consideremos apenas os 2,9 milhões de artigos científicos publicados pelos 13 países de maior produção no mesmo período. Teremos menos de 4% de artigos científicos risíveis.
‘É muito mais saudável que ler sobre o Senado, Sarney, Collor e Renan Calheiros. Está comprovado cientificamente.’
Essa pièce de résistance que coroa um artigo que destila ignorância acerca de estatística, análise de dados e ciências convida os leitores a serem não apenas cientificamente analfabetos, mas também politicamente estultos.
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Pós-graduando em Biologia, São Paulo, SP