Há cerca de um ano e meio atrás, enviei um artigo que o Observatório da Imprensa não publicou. Tratava da idéia, difundida na imprensa, de que a crise econômica internacional que então crescia tinha como causa o problema no setor imobiliário norte-americano. A idéia principal do artigo era que havia aí um erro na consideração da relação entre causa e efeito que era preciso inverter. Assim, cabia perceber que o estouro da bolha no segmento imobiliário norte-americano não era causa, mas era, antes, conseqüência de uma crise maior. O Observatório me respondeu que se tratava de um artigo sobre economia, não sobre imprensa – e, portanto, estava evidentemente fora do âmbito do Observatório. Concordei com a decisão e com a escolha de não publicar o artigo.
Cerca de um ano depois – há alguns meses atrás, portanto –, redigi outro artigo sobre o assunto, me esforçando por enfatizar mais ainda a questão da imprensa. Nesse segundo artigo, a idéia principal era a mesma, mas procurei desenvolver um arrazoado completamente diferente e formular uma nova linha de argumentação. Um aspecto básico enfatizado pelo artigo era de que os Estados Unidos, havia anos, estavam acumulando dívidas interna e externa grandes, sobretudo no que se refere à balança comercial. A dívida externa estava (como está) em torno de 80% do PIB nacional, que tem se mantido declinante em relação ao PIB mundial (cabe acrescentar que, na década de 90, o PIB norte-americano era mais de 30% do PIB mundial, tendo desde então baixado para algo próximo a 25%).
Inversão no modelo
O país desenvolveu a estratégia de compensar esses déficits tornando-se o grande tomador da poupança internacional – proveniente, sobretudo, dos países asiáticos. Com esse papel de grande tomador da poupança internacional, os altos endividamentos interno e externo tiveram como efeito, aparentemente paradoxal, um excesso de liquidez no mercado interno norte-americano. Por sua vez, esse excesso de liquidez causou grande furor principalmente no segmento imobiliário, provocando a formação e o desenvolvimento da bolha no setor imobiliário e gerando, por fim, os chamados empréstimos podres. Nesse sentido, o estouro da bolha iniciado em torno de 2005 teria levado ao agravamento da situação financeira internacional; na verdade, o estouro da bolha imobiliária é conseqüência da crise que já existia na economia norte-americana devido ao alto grau de endividamento.
Desta maneira, o artigo chamava a atenção para o fato de a imprensa, de modo generalizado, se restringir a repetir a idéia (difundida entre analistas e especialistas econômicos) de que o problema dos créditos sub-prime no âmbito imobiliário era a causa da crise econômica, enquanto, numa consideração mais correta, dever-se-ia inverter a relação de causa e efeito, ressaltando, assim, que o estouro da bolha imobiliária foi conseqüência da grande crise na economia norte-americana.
O segundo artigo simplesmente não foi publicado. Aceitei e acatei a decisão. Cabe então esclarecer por que voltar agora a esse assunto, tornando a insistir na importância daquela inversão no modelo de causa e conseqüência.
Cavando mais para baixo
Durante a campanha presidencial norte-americana, diante do favoritismo de Obama era fácil perceber a força imagética em torno de sua figura, mas era, afinal, obscuro definir o que ele pretendia fazer efetivamente sendo eleito. Depois de sua eleição, sobretudo na montagem de sua equipe econômica e ainda, depois de sua posse, suas declarações referentes às altíssimas dívidas interna e externa acumuladas nos anos precedentes pareciam indicar com alguma clareza em que direção ele pretendia seguir: preocupação em reduzir a escalada das dívidas, sobretudo no que tange ao déficit da balança comercial.
O perfil de sua equipe e sua manifesta preocupação com os altos níveis de endividamento nos oito anos anteriores faziam lembrar a ocasião em que o presidente Bill Clinton desenhou um grande zero numa lousa ao anunciar que o governo dele tinha conseguido zerar a balança comercial, numa direção oposta à seguida ao longo dos doze anos de governos republicanos que antecederam seu governo.
No entanto, recentemente, o presidente Obama anunciou que, no entender de seu governo, será necessário que haja um aumento nas dívidas do país nos próximos dois anos para que se possa superar a crise econômica internacional. O discurso foi bem recebido por autoridades e especialistas econômicos no mundo inteiro: não somente isso, mas o discurso foi considerado o grande motivo por ocorrerem altas expressivas nas Bolsas de Valores no mundo inteiro.
Analistas econômicos e a imprensa em geral não repararam que o novo discurso contraria tudo o que antes o presidente sugerira. Mais ainda, os especialistas e a imprensa não assinalaram que foi isso (os Estados Unidos fazerem, prolongadamente, altas dívidas interna e externa, com grandes déficits na balança comercial) que provocou, efetivamente, a crise que se declara pretender superar. Ninguém deu importância para a declaração do ministro chinês, em clara reação direta àquele discurso do presidente norte-americano, se dizendo alarmado com a possibilidade de um calote norte-americano.
Enquanto analistas comemoravam o anúncio e o mercado de valores reagia com euforia e a imprensa se restringia a informar o teor do anúncio e as reações esfuziantes que ele gerou, tive a impressão que o novo discurso do presidente mencionado no parágrafo anterior consistia em anunciar que ele considera que a crise econômica atual é tão funda que o modo mais fácil de sair do buraco é cavando mais para baixo – e somente para baixo.
Miopia jornalística
Para não dizer que não falei do jardim, da estufa e da floricultura na primavera: sempre que a imprensa se refere à crise no setor imobiliário nos Estados Unidos como a origem e a causa da crise econômica internacional, não se trata da pura objetividade jornalística, mas sim, de um esquema interpretativo simplista. Se, ao invés desse esquema imediatista sobre as relações de causa e efeito, a imprensa tivesse sido capaz de apresentar ao público um modelo interpretativo de causa e conseqüências mais completo, talvez então uma maior parte de seu público pudesse entender e avaliar melhor os princípios a partir dos quais, semana passada, o Prêmio Nobel de Economia Paul Krugman pôde criticar com força o plano norte-americano de reestruturação – com Krugman, assim, destoando completamente do tom dominante na imprensa. Cabe observar que Krugman é (merecidamente) conhecido por escrever sobre economia de maneira simples, evitando o economês complicado que costuma ser empregado por outros analistas. Mas ele nunca pôde ser completamente didático sobre a questão do encadeamento das relações de causa e conseqüências – possivelmente porque essa questão remete diretamente ao modo como o público está habituado a considerar o assunto. Mexer diretamente com os hábitos mentais do público poderia ser, em grande parte, mal compreendido e mal recebido e, muito provavelmente, no mínimo ineficaz.
Em tempo: talvez seja desnecessário ressaltar, agora, que este texto não é sobre economia, mas é, sim, referente aos parâmetros e procedimentos empregados no noticiário e no jornalismo econômicos. Ao adotar o esquema simplista de causa e efeito, ignorando um modelo mais complexo de causas e conseqüências, a imprensa é parcial. Com isso, não se trata de criticar sua falta de imparcialidade – como se ela tomasse partido, como se fosse ideológica –, mas de apontar que ela formula uma visão extremamente limitada, deixando de cumprir o que deveria ser sua função: oferecer ao seu público uma visão mais ampla. Não se trata de visão ideológica, e sim, de miopia jornalística.
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Bacharel em História e doutor em Filosofia pela FFLCH-USP, Campinas, SP