Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Um visionário por convicção e necessidade

“Volta ao trabalho e não esquenta a cabeça”. Foi com esta ordem que Alberto Dines, em agosto de 1970, me recebeu na sua sala de editor-chefe do Jornal do Brasil, depois que passei quase três meses desaparecido dentro de uma cela do DOI-CODI, no quartel da Polícia do Exército, na rua Barão de Mesquita, no Rio de Janeiro.

Foi meu primeiro contato direto com um profissional que mais tarde veio a se transformar num conselheiro e referência pessoal no jornalismo, mesmo tendo ele me demitido do JB, onde eu era, até 1972, o responsável pelo noticiário latino-americano na editoria internacional.

Dines tolerou o fato de eu ter sumido sem dar notícias e sem que os militares explicassem o meu desaparecimento, mas foi inflexível ao não admitir minha rebeldia contra um plantão de feriado, dois dias depois de ter regressado do Chile, onde a crise no governo Allende me forçou a trabalhar sete meses sem folga, como correspondente do JB.

Tolerância nas relações humanas e rigidez absoluta nas relações profissionais. Foram estas as características que me levaram a transformá-lo num ícone na profissão que escolhemos. Foram estas mesmas virtudes de Dines que nos aproximaram anos depois, em 1997, quando, voltando de um longo período no exterior, me ofereci para colaborar com o Observatório da Imprensa e fui aceito carinhosamente por ele.

Nossa convivência no Observatório foi difícil, mas ao mesmo tempo prazerosa. Difícil porque coincidiu com o início da era digital e nem sempre concordamos sobre como a internet influiria no exercício do jornalismo. Dura porque a sobrevivência do projeto dependia de financiadores e patrocinadores, cujo relacionamento com o OI variava conforme os humores da política nacional ou de estratégias internacionais.

Dines teve a intuição genial de publicar o OI na web em 1996, quase três anos antes dos grandes jornais entenderem que a internet era muito mais do que um novo sistema de comunicação. A digitalização baixou os custos, viabilizou a manutenção do site e permitiu que o projeto se transformasse num ponto de encontro de jornalistas de diferentes idades, experiências e posições ideológicas. Alguns desiludidos com a profissão, calejados por sucessivas frustrações, e outros entrando no jornalismo, cheios de gás, expectativas e ilusões.

Era uma tribo, meio anárquica e muito diferenciada, mas que reverenciava unanimemente o seu cacique, cuja liderança levou o público do Observatório a transferir a confiança e o respeito à pessoa de Alberto Dines para a proposta de jornalismo crítico indispensável ao equilíbrio informativo na era digital.

O empenho em promover a crítica da mídia foi, paradoxalmente, tanto um fator determinante no crescimento da audiência do OI, como o responsável pelo agravamento da crise de sustentabilidade do projeto. Os jornalões do Rio e São Paulo, bem como a Rede Globo e o sistema estatal de comunicação pública sempre mantiveram uma relação de amor e desconfiança em relação ao Observatório.

As aflições pelo aumento das dívidas, cortes de pessoal e pela incerteza sobre o futuro financeiro do projeto foram minando aos poucos a inesgotável resistência física de Dines, mas ele continuava inspirando uma confiança total em seus parceiros e subordinados. Sabíamos que divergências, às vezes duras, nunca seriam motivo para represálias, porque ele seguia um código de ética onde o profissionalismo sempre falou mais alto.

Fui um dos que o contrariou, algumas vezes, ao defender um aprofundamento da opção digital, não apenas na produção, edição e publicação de textos, mas também na adoção de novos paradigmas de relacionamento com os leitores do Observatório, e no desenvolvimento de um novo modelo de sustentabilidade do projeto, baseado na diversificação das receitas.

Dines deixa um legado único na história do jornalismo brasileiro. Além de ser um profissional e intelectual ao mesmo tempo inovador e conservador, teve a rara perspicácia de perceber que a observação crítica da imprensa viria a se transformar numa necessidade inadiável e insubstituível na era das fake news.

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Carlos Castilho é jornalista.