O ex-ministro das Comunicações do governo Fernando Henrique Cardoso e economista Luiz Carlos Mendonça de Barros deixou no início de outubro o comando do site e da revista Primeira Leitura. Em um comunicado assinado a seis mãos por Mendonça, Reinaldo Azevedo e Rui Nogueira, os leitores ficaram sabendo que os dois veículos continuarão existindo, agora sob a direção de Reinaldo e Rui e sem mudanças na linha editorial. Sobre a decisão de Mendonça de Barros, apenas a explicação de que ele ‘decidiu não ser mais parceiro nesta caminhada’.
Criado em agosto de 2000, o site Primeira Leitura é atualizado diariamente e se propõe a tratar de ‘política, economia e pensamento’. A revista surgiu em janeiro de 2001, incorporando a República (o primeiro nome foi República-Primeira Leitura). A circulação da revista é mensal e ela está na 32° edição. Em uma declaração de princípios que pode ser acessada na versão para a internet, o Primeira Leitura – site e revista (http://www.primeiraleitura.com.br) – apresenta com linha editorial a defesa intransigente da democracia, da pluralidade política e da economia de mercado. Nesta mesma declaração de princípios, os editores destacam que os dois veículos não têm vinculações partidárias ou preconceitos ideológicos.
A proximidade de Luiz Carlos Mendonça de Barros com o PSDB e os textos opinativos publicados no site e na revista fizeram muita gente associar o Primeira Leitura com o tucanato, fato que nem chega mais a irritar o jornalista Reinaldo Azevedo, já acostumado com as cobranças e as implicâncias. Se o Primeira Leitura realmente é muito crítico em relação ao governo Lula, a verdade é que a gestão de Fernando Henrique Cardoso também apanhou bastante nas páginas da revista e nos textos cotidianos do site. Pedro Malan era a vítima preferencial – a política econômica do ministro da Fazenda de FHC sempre foi contestada com vigor pela publicação.
Se as acusações sobre o ‘tucanismo’ do site não incomodam, agora Reinaldo arrumou sarna para se coçar. A saída do ‘sócio-capitalista’ deixou a editora que publica a revista e o site nas mãos de dois jornalistas. Na entrevista a seguir, ele conta como pretende lidar com esta nova experiência, fala sobre a crise da mídia brasileira e revela as suas expectativas para o futuro de Primeira Leitura.
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Por que o ex-ministro Luiz Carlos Mendonça de Barros deixou o Primeira Leitura? Como ficou a divisão societária da empresa?
Reinaldo Azevedo – Porque considerou que a editora já pode andar pelas próprias pernas, ou seja, pode ser comandada por aqueles que já tinham o comando editorial dos dois produtos: site e revista. Espero que ele esteja certo. Eu e Rui Nogueira passamos a dividir a responsabilidade meio a meio.
Haverá alguma mudança na linha editorial do site e da revista em função da saída de Mendonça de Barros?
R.A. – Não muda nada. Na verdade, embora poucos acreditassem, Luiz Carlos não era um patrão em sentido tradicional. Ou aquilo que muitos supõem ser o sentido tradicional. Nunca impôs nada. As opiniões e interpretações expressas por Primeira Leitura sempre nasceram no calor do debate interno. E põe calor nisso. Às vezes, a temperatura sobe bastante. Alguns temas nos mobilizam de tal sorte que podem tomar duas horas de muita conversa. Não deixa de ser um diferencial a nosso favor. Não há muito tempo para isso no jornalismo hoje em dia. Ele era uma referência importante, especialmente no debate econômico? Ora, é óbvio que sim. Só idiotas contariam com um quadro com a experiência do Luiz Carlos e se negariam a ouvi-lo. Mas revista e site jamais foram um boletim das suas opiniões. Houve vezes, inclusive, em que divergimos, sim. E coube a mim, nesse tempo em que estivemos juntos, como diretor de Redação, no pleno uso das minhas prerrogativas, decidir. Jamais fui objeto de qualquer pressão. Jamais fui tão livre. Não havia defeitos editorial no Primeira Leitura que já não pudessem ser atribuídos exclusivamente a mim e ao Rui. Espero que o Luiz Carlos passe a ser uma das fontes de Primeira Leitura.
Como está a saúde financeira do site e da revista? Você pode revelar a audiência e tiragem dos dois veículos?
R.A. – Lutamos com dificuldades, como todo mundo. Mas não temos dívidas. E a idéia é não fazê-las. A revista tem uma tiragem auditada (PriceWaterhouse) de 25 mil exemplares. O site tem uma média de 160 mil visitas/mês e uma média de 900 mil a 1 milhão de page views, o que é excelente para quem está fora dos grandes portais.
Como você e Rui Nogueira planejam manter e fazer crescer as duas publicações? O modelo de negócio permanecerá o mesmo de antes da saída de Mendonça de Barros?
R.A. – Digamos que eu e Rui tivéssemos mais tranqüilidade, é claro, quando Luiz Carlos era o dono do negócio. Agora, temos de suar mais, ter um departamento comercial mais claramente organizado para disputar o mercado publicitário, como todo mundo. E numa revista claramente voltada, como está estampado na capa, para economia, política e pensamento, que não tem a preocupação de fazer parecer fáceis alguns temas que, infelizmente, são mesmo difíceis, complexos. Temos de fazer a revista chegar a mais leitores, aumentar, tão logo seja possível, a tiragem, porque há demanda para tanto, ampliar a sua presença em setores formadores de opinião, especialmente entre estudantes universitários, que constituem a larga maioria dos nossos assinantes.
Como a redação da revista reagiu à novidade? Os jornalistas e demais funcionários estão confiantes em trabalhar em uma empresa dirigida agora apenas por jornalistas? Quantas pessoas trabalham hoje no Primeira Leitura?
R.A. – É evidente que todos estamos com um certo frio na barriga, não é? Sei que a equipe confia em mim e no Rui como jornalistas. E, se as pessoas aqui estão, trabalhando como nunca, é porque apostam que as coisas vão dar certo. Porque já estão dando. Somos hoje, considerando jornalistas e apoio técnico, 17 pessoas. Para fazer um site diário, bastante robusto como se pode ver, e uma revista mensal de 100 páginas. É certamente uma equipe menor do que aquela que seria necessário ter. Mas estamos todos muito animados.
Chama atenção na revista o pequeno número de anúncios publicados. Por que uma revista com a postura do Primeira Leitura não consegue anunciantes na iniciativa privada nacional? A saída de Luiz Carlos Mendonça de Barros não pode piorar este quadro?
R.A. – Creio que a edição de outubro mudaria parte da sua pergunta. Não é só Primeira Leitura que enfrenta dificuldades. Outras revistas enfrentam também. Para que a saída de Luiz Carlos criasse empecilhos novos, teríamos de partir da suposição de que a presença dele facilitava contatos. Luiz Carlos nunca permitiu que se usasse seu nome, influência ou reputação para trazer dinheiro para a revista e o site. E nem nos passou pela cabeça tal tentação. Acho que ele fez muito bem. Além de dono da empresa, ele sempre foi um ativo intelectual deste grupo, não um ativo comercial. Na verdade, todos nós nos descuidamos bastante dessa área. Chegou a hora de cuidar. E as perspectivas são animadoras. Por que tínhamos tão pouco anúncios? Porque dávamos pouca atenção ao assunto, o que foi um erro. Eu poderia aqui pisar o velho caminho conhecido das vítimas de plantão e dizer que somos bons demais para atrair anúncios. Isso é besteira! Existe um público para uma revista como Primeira Leitura e, profissionalizadas as relações comerciais, existem anunciantes para ela também. Temos de convencê-los disso, como todo mundo. E, na verdade, parece que eles já estão se convencendo.
O Primeira Leitura tem uma postura muito crítica em relação ao governo Lula. Vocês têm esperança de receber alguma publicidade dos grandes anunciantes do governo federal? E por que os governos estaduais de São Paulo e Minas, por exemplo, não anunciam na revista?
R.A. – Primeira Leitura tem uma postura muito crítica em relação a governos. Tinha também em relação ao governo FHC, o que, muitas vezes, nossos críticos esquecem. O combate mais duro a um texto de um acadêmico que previa o fim do mundo se Lula fosse eleito se deu no site Primeira Leitura. E com todas as letras. Ajudávamos o PT fazendo aquilo? Não creio! No mesmo texto, dizia-se que a única saída de Lula seria ser mais conservador do que FHC. Bingo! Jornalismo só faz sentido se for para ser crítico mesmo. Desde que não se faça crítica preconceituosa. Eu espero não enfrentar dificuldades especiais com a publicidade de qualquer governo, seja o federal, sejam os estaduais. Se eu partisse desse princípio, estaria supondo que algumas revistas que estão lotadas de anúncios oficiais estariam administrando suas opiniões para ter dinheiro em caixa. Você acha que existe alguma revista, hoje em dia, que puxe o saco do governo só para ter anúncio? Sou respeitoso com as outras publicações. Não creio nisso. Suponho que a Secom seja mais profissional do que isso. De resto, se somos bastante críticos, e somos mesmo, reivindico para Primeira Leitura a publicação das melhores entrevistas até hoje concedidas à mídia nacional por gente como Antonio Palocci (ministro da Fazenda), Marcos Lisboa (secretário de Política Econômica), Tarso Genro (ministro da Educação) ou Luiz Fernando Furlan (ministro do Desenvolvimento), dentre outros. Em agosto de 2001, fizemos uma entrevista histórica com José Dirceu, hoje ministro-chefe da Casa Civil. Ali anunciávamos que o PT viria para ganhar. Ele foi capa da revista, à frente da bandeira brasileira, com destaque para as palavras ‘ordem e progresso’. Era nosso assinante. Não sei se ainda é. Espero que sim. Ele está entre os leitores que quero ter.
Agora que você é um empresário de comunicação, gostaria de saber sua opinião sobre o Pró-Mídia e também se teria algum pleito a fazer junto ao BNDES. E qual é a sua análise das perspectivas para as empresas de mídia no curto prazo? O mercado publicitário vai reagir nos próximos anos?
R.A. – Sou um jornalista que, com outro jornalista, decidiu ter uma revista e um site para fazer jornalismo. Não mudei de profissão. Se eu fosse principalmente empresário, poderia tentar ganhar dinheiro fazendo outra coisa. Digamos que jornalismo não seja hoje o melhor filão para quem quer se iniciar como um empreendedor. Agora, vamos ao ponto: não creio que um banco oficial deva financiar o poder que tem a função principal de vigiá-lo. Como dizia Lúcio Flávio, ‘bandido é bandido, polícia é polícia’. Citar um bandido pega mal? Não pega quando a alusão é contraponto a um policial, Mariel Mariscot, que era, ao mesmo tempo, bandido. Ou, então, deixe-me citar um gênio da raça na área. Estou com Octavio Frias de Oliveira nessa questão, se me permite o atrevimento. Se o poder financia o jornalismo, esse jornalismo estará de joelhos. E ponto. Isso como regra geral caso falemos de um programa oficial chamado Pró-Mídia ou coisa assim. Não descarto que essa ou aquela empresa em dificuldades pudessem recorrer ao BNDES. Se for um bom negócio para o banco, se as regras forem transparentes, se não for uma tentativa de cooptação, se não for premiar a incompetência e a má gerência, que se faça. Quanto ao mais, espero que a mídia brasileira se profissionalize o bastante e possa buscar financiamento entre os capitalistas nacionais e os estrangeiros, nos limites da lei e dentro da diversidade dos mercados publicitários público e privado.
O setor passa por uma espécie de transe. A mídia impressa sofre a concorrência da internet, que não é um bom veículo anunciante. Jornais têm de se haver, em todo o mundo, com quedas de circulação, o que leva a uma diminuição de sua receita porque avilta o valor da publicidade. E, curiosamente, têm de oferecer aos leitores uma versão eletrônica, que concorre para corroê-los. Ninguém ainda encontrou a saída para isso. As revistas semanais sofrem menos porque carregam mais no viés interpretativo, embora ainda pouco – no Brasil ao menos. Editorialmente, creio que a saída do jornalismo impresso será oferecer o que o noticiário online não tem condições de fazê-lo: mais análise, mais interpretação, mais opinião, mais engajamento – não no sentido partidário, é claro. O jornalismo impresso não vai morrer, mas será outro, talvez mais especializado, com tiragens menores.
A rigor, a geração na internet ainda não chegou ao poder, mas chegará. Tenho 43 anos. Já sou velho o bastante para ainda precisar da palavra escrita no papel. Todos nós nos pegamos a ler no papel o que já vimos nas edições eletrônicas. Às vezes, é o mesmo texto. Os meus sobrinhos, de 17 e 15 anos, já se informam só por internet. As minhas filhas, de 9 e 7 anos, já dominam no computador os mesmos recursos que eu. O jornalismo impresso terá de se reinventar, de ter mais pegada, de partir do princípio de que a maioria dos leitores já tem pleno conhecimento do fato. Precisa de interpretação, de análise, de inteligência.
Quanto ao mercado publicitário, creio que, como tudo, fica na dependência da economia do país. Anuncia mais com mais crescimento, menos com menos crescimento. Tomara que o país cresça muito e durante muito tempo, não é? Ou alguém acha que nós militamos naquela do ‘quanto pior melhor’? Ser crítico, muito crítico, é uma coisa. Ser doido e torcer contra o país, bem… aí são outros quinhentos. Moro no Brasil, minha família mora no Brasil, minhas filhas moram no Brasil, e espero que tenham um grande futuro no Brasil. A crítica, mesmo a mais azeda, é uma expressão também de afeto se pautada pela honestidade intelectual e se conhecidos os seus critérios. Estou sinceramente convencido de que os críticos contribuem mais para o futuro do país do que os aduladores. A crítica é que é íntima da auto-estima dos brasileiros, e não a adulação barata. No mundo inteiro, não só no Brasil, os governantes não gostam muito disso. É do jogo. É por isso que uma das divisas de Primeira Leitura é o que chamamos ‘republicanismo’.