Um dos pontos que chama a atenção no relatório da Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP, na sigla em espanhol) sobre o estado atual da liberdade de imprensa no Brasil, divulgado no Paraguai em 17 de março (íntegra aqui) e comentado neste Observatório (‘As lições de democracia da SIP‘), é que de dez fatos apontados como ‘afetando’ a liberdade de imprensa entre nós, quatro são decisões judiciais tomadas dentro dos parâmetros legais em vigor no país.
Trata-se de decisões de quatro juízes eleitorais, em três estados diferentes – Santa Catarina, Rio de Janeiro e São Paulo –, referentes à disputa eleitoral local de 2008.
Da mesma forma, no domingo (29/3), o jornal Estado de Minas, de Belo Horizonte, deu manchete de primeira página – retranca ‘De Volta À Ditadura’, título ‘TRF afasta ameaça à liberdade de imprensa’ – à concessão de liminar do Tribunal Regional Federal da 1ª Região contra decisão de juiz da 4ª Vara da Justiça Federal em Minas, que mandava o jornal publicar direito de resposta solicitado legalmente pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
A matéria, que também foi publicada com destaque no Correio Braziliense, é acompanhada de outra com o título ‘ANJ repudia tentativa de intimidação’, que descreve nota da Associação Nacional de Jornais em repúdio à decisão do juiz da 4ª Vara e evoca o Código de Ética e Auto-regulação da própria ANJ (esta nota não foi encontrada no site da ANJ em 29/3/2009).
Comportamento curioso
O comportamento da grande mídia em relação às decisões judiciais é, no mínimo, curioso. Decisões que contrariam seus interesses são ‘repudiadas’ como ameaças à ‘liberdade de imprensa’ e recebem grande destaque; decisões que interessam ao cidadão e dizem respeito aos seus direitos constitucionais, são escondidas ou ignoradas.
Um exemplo: passou praticamente despercebida a decisão de juiz da 18ª Vara Cível do Rio de Janeiro que acatou ação promovida pelo Sindicato das Secretárias do Estado do Rio de Janeiro (Sinserj) contra a Infoglobo Comunicações, iniciada em 2005, e que levou à publicação da nota abaixo na coluna ‘Gente Boa’ do ‘Segundo Caderno’ de O Globo, no último dia 17 de março.
‘Em razão da publicação, por este jornal, de nota ofensiva às secretárias, alusiva ao seu dia comemorativo (30/09), o Juízo da 18ª Vara Cível proferiu sentença em que o ato ilícito foi reconhecido, tendo sido arbitrada indenização de R$ 25.000 a ser revertida para o sindicato da classe, condenando-se, ainda, o jornal a publicar a presente nota, para ciência dos interessados.’
O Sinserj, representante das secretárias do Rio de Janeiro, solicitou reparação moral em razão de nota publicada em outubro de 2005, na coluna ‘Gente Boa’, por relacionar o Dia da Secretária com o aumento de movimento dos motéis. Vale a pena citar parte da sentença:
‘Cumpre aqui transcrever a nota em questão, publicada na coluna `Gente Boa´ do Segundo Caderno do jornal O Globo:
O dia delas
A sexta-feira passada, Dia da Secretária, foi ótima para os motéis. O Bambina, em Botafogo, acusou aumento de 30% no movimento. Noventa por cento dos casais chegaram na hora do almoço. Saíram uma hora depois.
Em primeiro lugar, ressalte-se que não há comprovação quanto à veracidade da informação constante da nota. Muito pelo contrário, tanto assim que a direção do Hotel Bambina, em correspondência dirigida ao jornal, desmentiu tal afirmação (fls. 74), não tendo havido réplica por parte do jornal quanto a tal desmentido quando da publicação da carta. (…)
Sendo assim, não há de se acolher a alegação da ré no sentido de que se tratou de nota jornalística. Absolutamente.
O que se depreende da situação é que o jornal apressou-se em divulgar, com intenção nitidamente sarcástica, informação não comprovada sobre o alegado aumento no movimento do hotel em questão no dia das secretárias.
Pelo conteúdo da nota, percebe-se obviamente que não houve qualquer intenção de informar, mas sim de tratar com malícia e ironia a informação supostamente passada por funcionário do hotel, a fim de `brincar´ com o velho preconceito pelo qual se põem as secretárias no papel de amantes de seus patrões.(…)
Ou seja, foi a nota claramente dirigida ao ‘entretenimento’, e não à informação dos leitores.(…)
Atingiu-se, assim, a honra e dignidade de toda uma classe profissional, formada notadamente em sua maior parte por mulheres, podendo se considerar, a propósito, que a nota não somente é ofensiva às secretárias, mas é, também, machista.’
Acima da lei?
Estariam os grupos de mídia, que alegam monitorar a ‘liberdade de imprensa’ em defesa da democracia, se rebelando contra as decisões judiciais? Será que os empresários de comunicação consideram seus códigos auto-reguladores como estando acima da legislação em vigor?
Por que consideram ameaçadoras à ‘liberdade de imprensa’ decisões tomadas legalmente dentro do Estado de Direito e das regras democráticas? Por que não se dá a devida cobertura às decisões judiciais que protegem os interesses dos cidadãos-consumidores, fim último e razão de existência da própria ‘liberdade de imprensa’? Estariam eles se colocando acima da Justiça quando se refere a casos e decisões que afetam seus interesses diretos?
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Pesquisador sênior do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política (NEMP) da Universidade de Brasília e autor/organizador, entre outros, de A mídia nas eleições de 2006 (Editora Fundação Perseu Abramo, 2007)