Sem bola de cristal, não consigo imaginar o que nos trarão as próximas semanas e se a frágil estrutura democrática brasileira irá suportar a ameaça próxima, visível, opressiva e sufocante de um novo período de trevas, perseguições, irracionalidade e da falta de liberdade.
Pura paranóia de quem viveu os primeiros anos da ditadura militar e precisou mudar todo o curso de sua vida num exílio que nunca acabou? Espero ser isso e não uma sensibilidade capaz de sentir os sinais anunciadores do pior.
É muito mais fácil escrever depois, do que antes da tragédia acontecer. E me vem à memória O Conformista de Bertolucci, na Itália de Mussolini, quando o mal se instala de maneira irremediável.
As sensações boas podem rapidamente se degenerar em lampejos de angústia e medo. E nesse clima de apreensão vou tentar contar meu sentimento de reencontro, meio século depois, com o clamor popular.
No ônibus me levando do interior à capital paulista, não posso me conter e conto aos passageiros próximos a razão de minha viagem – vou representar minha família, minhas filhas e minha esposa, na manifestação contra o Coiso, cujas declarações machistas ofenderam as mulheres, além de constituir um perigo para as recentes conquistas brasileiras. Uma senhora reage lamentando não poder ir.
No metrô da linha amarela, rumo ao Largo da Batata, elas constituem a maioria dos passageiros. Na escada rolante que nos leva à saída, não podem se conter e escandeiam — elenão! elenão!
Me lembro das vozes dos jovens há mais de cinquenta anos repetindo o refrão que não conseguia sensibilizar os passantes – o povo unido derruba a ditadura ou Abaixo a ditadura. Os tempos mudaram, a linguagem se compactou, as mensagens pela Internet se abreviam e os slogans ou palavras de ordem se sintetizaram como num tweet — Elenão!. Ele quem? Quem ouve entende e sabe muito bem de quem se trata.
Ele é o recém nascido do ovo da serpente. Em alguns meses, incorporou a mensagem do ódio, subjacente em tantas pessoas aparentemente pacatas e as conquista com as promessas e o canto da sereia de um retrocesso, de um mundo reacionário, no qual serão punidos os desejos de mais liberdade e igualdade das mulheres, negros, índios, pobres, obrigados a se sujeitar ao seu lugar de submissão dentro da sociedade.
Subo numa mureta, posso ter uma visão de conjunto e num movimento de 360 graus contemplo toda aquela gente reunida.
Mulheres, morenas como é a cor das conquistas sociais dos últimos anos, livres, sem medo de mostrar seus corpos, seus desejos de igualdade com os homens e de fazer parte da nova sociedade em formação, de marcar sua determinação de serem donas de seu corpo, ventre e sexo, sem se submeterem a códigos ultrapassados criados por homens e deuses.
Difícil conter a emoção. Muita coisa mudou nesse meio século, difícil de digerir pela classe média, que não consegue se desligar da sua anacrônica trilogia do deus, pátria e família.
Ah, o Brasil mudou, essas mulheres morenas não são mais escravas dos seus machos, nem objetos, nem devotas, nem ignorantes prontas a repetir a voz dos seus mestres, elas provaram o fruto proibido da liberdade, da igualdade e também sabem impor suas vozes contra a ameaça de um novo opressor — elenão!
Talvez tenham de lutar. No dia seguinte à manifestação, leio que o bispo Edir Macedo e outros líderes evangélicos convocam seus fiéis contra a pecaminosa liberdade. Me lembro das igrejas protestantes alemãs que logo aderiram a Hitler, como se deus aprovasse a raça pura e dos meninos e rapazes da escola dominical que eram automaticamente inscritos e passavam a usar o uniforme da juventude hitlerista. O mea culpa do pós-guerra das igrejas alemãs não ressuscitou as vítimas das preces da hipocrisia.
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Rui Martins é jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura. Criador do primeiro movimento internacional dos emigrantes, Brasileirinhos Apátridas, que levou à recuperação da nacionalidade brasileira nata dos filhos dos emigrantes com a Emenda Constitucional 54/07. Escreveu Dinheiro Sujo da Corrupção, sobre as contas suíças de Maluf, e o primeiro livro sobre Roberto Carlos, A Rebelião Romântica da Jovem Guarda, em 1966. Vive na Suíça, correspondente do Expresso de Lisboa, Correio do Brasil, e RFI. Editor do Direto da Redação.