Introdução
O grande mérito da obra 1964 – A conquista do Estado reside na investigação que revela, definitivamente, que a queda do presidente João Goulart começou a ser pavimentada anos antes, sobretudo após a criação do Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (Ipes), no dia 29 de novembro de 1961. Tal instituto, fruto do esforço do bloco empresarial conservador anti-reformista, desenvolveu diversas atividades – várias delas em parceria com o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (Ibad), de natureza semelhante – com vistas a desestabilizar o governo reformista de Goulart, macular movimentos sociais de cunho progressista e difundir idéias anticomunistas. Alguns dos instrumentos mais importantes para as ações do complexo Ipes/Ibad foram os veículos de comunicação de massa.
O uruguaio René Armand Dreifuss, autor da empreitada, é graduado em Ciências Políticas e História pela Universidade de Haifa, em Israel, mestre em Política, pela Universidade de Leeds e PhD em Ciência Política pela Universidade de Glasgow, ambas na Grã Bretanha.
Consenso burguês
Já no final da década de 1950, um pululante movimento de infusão de consciência e interesse de classe foi destinado às massas por um corpo de protagonistas de segmentos heterogêneos que abarcava estudantes, intelectuais, partidários e militantes de partidos políticos, clérigos católicos e até militares. Foi em meio a esse contexto que se deu o marcante comício das reformas, realizado em 13 de março de 1964, no qual o presidente da República, o reformista João Goulart, discursou enfaticamente contra o latifúndio e o imperialismo, ladeado por lideranças de movimentos sociais.
A reação conservadora aos movimentos populares principiou-se com a gênese de um laborioso consenso entre os segmentos da classe dominante, de modo a permitir a formação de um bloco histórico em torno da fração burguesa multinacional e associada. O primeiro passo tomado nessa direção foi o trabalho de conscientização dos empresários e das distintas frações da classe dominante da necessidade destes se preocuparem além dos lucros comerciais de seus negócios para se envolverem em ações de defesa conjunta de classe. Pois, ‘seria necessário agir como uma classe e ser capaz de liderar politicamente uma reação burguesa contra o Executivo, restituindo-o a seu controle’ (DREIFUSS, 1986, p.169).
Em seguida, a ciência da importância da ajuda e da anuência da maioria da população na lida pela reconquista do poder de Estado levou o bloco burguês modernizante-conservador a criar o Ipes, em 29 de novembro de 1961, evento que, na ocasião, foi saudado por importantes veículos de comunicação impressa, como o Jornal do Brasil, O Globo, o Correio da Manhã e o Última Hora, conforme cita Dreifuss (1986, p.163). Não demorou para a expansão do Ipes ser levada a cabo, estendendo sua atuação para outras cidades-chave e ampliando consideravelmente o número de membros que o compunham.
A mobilização feminina
O Ipes era uma entidade competente cujo esforço empreendido podia ser exemplificado pela disciplina e pelo número periódico de reuniões que realizava. As mensagens que divulgam os seus posicionamentos eram emitidas através de artifícios diversos, entre os quais o racional uso da comunicação social e a realização de cursos sobre temáticas políticas e econômicas. Sua atuação era marcada pela discrição, em detrimento da exposição de entidades congêneres como a Ação Democrática Popular (Adep), o Ibad, a Promotion S.A. e a Associação dos Dirigentes Cristãos de Empresa (ADCE), que o resguardavam. No complexo, ‘o IBAD agia como unidade tática…’, ao passo que o IPES ‘…operava como centro estratégico…’ (DREIFUSS, 1986, p.164).
Estiveram entre as empresas que colaboram financeiramente com os intelectuais orgânicos burgueses do complexo Ipes/Ibad a Texaco, a Shell, a Esso do Brasil, a Standard Oil of New Jersey, a Bayer, a Schering, a General Eletric, a IBM, a Coca-Cola, a Cia. de Cigarros Souza Cruz, a Belgo-Mineira e a automobilística General Motors (DREIFUSS, 1986, .207).
Além do Ipes, e do Ibad, movimentos paralelos, como a Associação Cristã de Moços e a Associação dos Dirigentes Cristãos de Empresas, exerceram papéis profícuos na lida contra os movimentos populares. Foram, contudo, entidades de pressão femininas organizadas, como a Campanha da Mulher pela Democracia (Camde) que, por meio de ações engendradas por donas-de-casa de classe média, principalmente aquelas integrantes do núcleo familiar de militares, comerciários e tecnoburocratas, contribuíram, mormente, para a desestabilização do governo reformista nacional de João Goulart. O auge de seus esforços culminou com a grande Marcha da Família com Deus pela Liberdade, empreendida após o comício das reformas, demonstrando a força da mobilização feminina organizada da classe dominante.
Ideologia e doutrinação
Os discursos capitais adotados pelos intelectuais orgânicos hegemônicos do bloco modernizante-conservador abrangiam ataques à oligarquia rural, ao comunismo, ao socialismo e à corrupção do populismo – no caso dos três últimos, apresentados em conjunto, acabavam relacionados entre si, perante a opinião pública – e a defesa do argumento que arrolava a relativa prosperidade do Brasil e as melhorias nos padrões de vida da população à iniciativa privada, em prejuízo dos métodos socialistas e de intervenção estatal (DREIFUSS, 1986, p.231-232).
A gama de artifícios empregada pelos intelectuais orgânicos modernizante-conservadores era ampla e extrapolava as técnicas de comunicação social propriamente dita. Dentre os iniciativas e canais mais utilizados na lida pela conquista de um mínimo de hegemonia necessário para a pavimentação do golpe de Estado de abril de 1964 estiveram a publicação e divulgação de livros, panfletos, jornais, revistas e folhetos; a realização de palestras, simpósios, conferências através da imprensa e debates públicos; o emprego de filmes, peças teatrais, desenhos animados e programas e propagandas em emissoras de rádio e televisão; e, finalmente, as publicações de artigos e informações de interesse em jornais (DREIFUSS, 1986, p.232).
Em tais empreendimentos, os intelectuais orgânicos da elite valeram-se do apoio e/ou acordo com diversas editoras – que, em muitos casos, contribuíram com o acolhimento de trabalhos oriundos de entidades propugnais de classe, como o Ipes –; artistas de cinema, televisão e de teatro; literatos, dentre os quais José Rubens Fonseca, Raquel de Queiroz e Nélida Piñon (DREIFUSS, 1986, p.234); e profissionais e especialistas das mais variadas habilitações da comunicação social, como relações públicas, jornalistas, publicitários e cineastas, além de agências publicitárias multinacionais de grande porte.
Imbuídos nos propósitos do bloco modernizante-conservador, grupos de mídia desempenharam papéis fundamentais, conferindo visibilidade às causas da intelectualidade orgânica da elite e, em certa medida, amplificando as mobilizações dos estratos da classe média alinhados e aparelhados pelo complexo Ipes/Ibad. Mantinham, diretamente ou por intermédio de algum membro diretor, relacionamento com o complexo, grupos importantes como os Diários Associados – do magnata Assis Chateaubriand, proprietário de rádios, jornais e emissoras de televisão –, a Folha de S.Paulo – cujo gestor, Octavio Frias, era associado ao Ipes –, O Estado de S. Paulo – membro de um grupo que detinha ainda o Jornal da Tarde e a rádio Eldorado de São Paulo –, O Globo – de propriedade do grupo de Roberto Marinho, que possuía ainda a rádio Globo –, o Jornal do Brasil, a Tribuna da Imprensa – da qual um dos sócios era o político conservador Carlos Lacerda –, o Correio do Povo, do Rio Grande do Sul, e as emissoras de televisão Record e Paulista (DREIFUSS, 1986, p.233).
Mídia r
Dreifuss (1986, p.233-234) cita ainda os jornais: Diário de Pernambuco – de Recife, que publicava a coluna anticomunista ‘Periscópio’, de autoria de Paulo Malta – e os paranaenses Diário do Paraná e Imprensa Nova. Em São Paulo, agregou-se à lida doutrinadora do Ipes o então recém-criado jornal Notícias Populares, lançado pelo empresário Herbert Levy, ligado ao Ipes e à agremiação conservadora União Democrática Nacional (UDN). Voltado para o nicho de leitores de baixa renda e de classe média baixa, Notícias Populares propôs-se a batalhar por posições, com vistas ao consenso em torno do bloco burguês, no interior do grupo ao qual se destinava, o de consumidores de mídias populares. Somado a esses, uma vasta de rede mídias, especialmente impressas, de portes distintos, espalhados pelo Brasil, contribuíram, por meio de seus conteúdos, com a ação política de classe do bloco modernizante-conservador. O Ipes contava, da mesma forma, com o apoio de agências de notícias, fundamentais na disseminação dos materiais da intelectualidade orgânica burguesa pelos meios de comunicação dos confins do país.
As diversas modalidades de mídias impressas, de maneira especial os jornais, também possibilitaram, sobretudo entre 1962 e 1964, o escoamento de inúmeros manifestos – maiormente assinados por entidades de classes profissionais – apoiados e patrocinados pelos intelectuais do bloco modernizante-conservador. Dentre os manifestos, Dreifuss (1986, p.235) menciona o ‘Manifesto à nação’ (1963) – oriundo do Centro Democrático de Engenheiros, em São Paulo –, o ‘Manifesto das enfermeiras às forças armadas’ (1963) – onde as forças armadas chegam a ser convocadas a intervir contra o governo de João Goulart –, o ‘Manifesto dos estudantes de direito da Universidade Mackenzie’ (1963) – articulado em um meio considerado um dos focos de resistência da direita à mobilização esquerdista no movimento universitário –, e o extenso manifesto ‘Para o Brasil, para o seu progresso e para a felicidade de seu povo, contra a desordem, a irresponsabilidade e a demagogia’ – ajeitado por associações empresariais, sindicatos patronais, federações e pelo Lyons Club.
Na mídia televisiva, o complexo Ipes/Ibad valeu-se do apoio das emissoras, que retransmitiam os programas produzidos pela intelectualidade orgânica burguesa no Rio de Janeiro e em São Paulo. A mídia rádio também foi priorizada como veículo de doutrinação na medida em que se tratava, especialmente na época, de uma opção popular que alcançava as massas sem acesso à televisão. Aqui, como na TV, o Ipes agiu profusamente por meio de patrocínio a programas pertinentes à linha editorial propugnada pela intelectualidade orgânica da elite, sem, todavia, se expor. Foi o caso de conteúdos transmitidos pela rádio Tupi, de São Paulo – notadamente anticomunistas e destinados às classes trabalhadoras (DREIFUSS, 1986, p.249).
Conclusão
A intensa campanha política e ideológica empreendida por setores dominantes da sociedade civil, com vistas à deposição de Goulart e à implantação radicalizada de demandas da elite, conduz à tese de que o golpe de 1964 não foi, como generalizadamente costuma-se afirmar, apenas um movimento conspirativo militar, sendo antes um evento decorrente de uma prévia e laboriosa disputa de hegemonia por segmentos organizados em blocos históricos distintos, da qual saiu vencedor aquele que detinha os meios de produção e, por conseguinte, o poder econômico. Pode-se dizer que essa é uma das teses centrais da obra de Dreifuss – fruto de uma pesquisa de fôlego devidamente referenciada ao fim de cada capítulo.
Após os primeiros passos, os intelectuais orgânicos do consenso burguês conseguiram, de modo bem-sucedido, infundir nos segmentos dominantes, intermediários e militares, ‘… primeiro a idéia de resistência contra o governo, depois o consenso e a urgência quanto à sua derrubada’ (DREIFUSS, 1986, p.165). E, para isso, contaram com o profícuo apoio da mídia privada brasileira que, na ocasião, esteve alinhada ao bloco modernizante-conservador.
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Graduado em Comunicação Social pela Universidade Federal de Alagoas; mestrando do programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco; pesquisador do Grupo de Pesquisa COMULTI – UFAL/ COS/ CNPq, no grupo de estudo Mídias, Processos Sociais e Economia Política da Comunicação e articulista do portal Profissão Mestre.