Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A razão cínica das organizações Globo e o tiro que saiu pela culatra

Publicado originalmente em objETHOS.

Foto: Scyther5/Getty images

Seja qual for o resultado do segundo turno das eleições do próximo dia 28 de outubro, há algo de inédito no ar: tanto o candidato do PSL quanto o do PT, embora por razões distintas, não estará de braços dados com a deusa platinada. Bolsonaro porque foi acolhido pelos braços de Edir Macedo, líder da Igreja Universal do Reino de Deus e dono do grupo Record. Sua predileção ficou evidente quando se dispôs a dar uma entrevista exclusiva e chapa-branca para a emissora, veiculada no mesmo horário do debate entre os presidenciáveis na emissora da família Marinho. E o próprio líder evangélico já declarou publicamente apoio a Bolsonaro.

Haddad, por sua vez, porque tem manifestado disposição para atacar um problema que não fora enfrentado pelos ex-presidentes Lula e Dilma Rousseff: a democratização dos meios de comunicação no Brasil. Uma questão que se tivesse sido levada a bom termo no passado poderia ter evitado muitas das arbitrariedades que conduziram Dilma ao impeachment e Lula à prisão e, posteriormente, a uma crise econômica, política e institucional históricas, além da ascensão de uma extrema direita que não tinha representação, a não ser de forma caricata, mas que hoje se fortalece na Câmara, no Senado e que poderá chegar à Presidência da República.

Perante essas duas tendências, a Globo pode ver suas grandiosas verbas publicitárias minguar. E não só as verbas. O capital simbólico de uma emissora que costuma ditar as regras de conduta e condicionar a subjetividade do povo brasileiro parece não estar bem calibrado. O tiro promete sair pela culatra. Ou na versão mais poética, “cría cuervos que te sacarán los ojos”.

Uma das responsáveis pelo impeachment da então presidenta Dilma Rousseff, e que chegou a ensaiar apoio à deposição de Michel Temer por conta de denúncias de corrupção que veiculou com exclusividade, a Globo apostou suas fichas em uma candidatura de centro que não vingou. Partidos como o PSDB, MDB e DEM murcharam, enquanto o PSL, conduzido por Bolsonaro, cresceu, chegando a eleger 52 deputados, tornando-se a segunda maior bancada da Câmara. Esse aumento parece ter autorizado os apoiadores do ódio a saírem do armário.

O debate racional cedeu lugar a uma onda de animosidade e preconceito que há muito tentava ser domada por instituições democráticas e setores mais arejados da sociedade. Racistas chulos, preconceituosos de toda ordem, machistas grotescos, homofóbicos delirantes, que costumam ser combatidos até mesmo pela dramaturgia da emissora, surgem como vilões típicos de uma trama folhetinesca para adentrar no espaço público, partilhado. Discursos violentos que saem das redes de WhatsApp para entrar na vida real. Exemplos como a morte por 12 facadas do mestre de capoeira Moa do Katendê por um eleitor de Bolsonaro ou como a agressão sofrida por uma jornalista em Teresina por usar uma camisa vermelha são apenas sinais fatídicos do que ainda está por vir. Os “bolsominions” já saem das redes e proliferam-se pelos espaços mais cotidianos: escolas, supermercados, esquinas, ruas, academias de ginástica, bares, infestando as ruas e interditando a fala, a conduta, a vestimenta.

Diante deste cenário desolador, em que um projeto de barbárie foi escolhido por quase 50 milhões de brasileiros, é de se perguntar: como se comportará a rede Globo quando seu próprio casting, formado também por mulheres, negros e gays, for vítima daquilo que a emissora também plantou? Será que conseguirá reformular a pauta jornalística a tempo, mostrando o quanto a mídia deveria ser decisiva numa democracia para refundar valores universais e aplacar ódios fascistas?

Embora esteja lançando mão de campanhas pelo respeito às diferenças em seus intervalos comerciais, fazendo reportagens sobre o aumento do feminicídio em seus telejornais e realizando entrevistas com combatentes do “neofascismo”, como a realizada pela última edição do Fantástico com Roger Waters, do Pink Floyd, é provável que seja tarde demais. Talvez daqui a algumas décadas ensaie um mea culpa, tal qual fez em 2011 ao se retratar de uma informação veiculada em 1984! Referia-se ao fato de o Jornal Nacional noticiar o maior comício da campanha das Diretas Já como um simples evento relativo ao aniversário de São Paulo. A empresa também chegou a admitir, muitas décadas depois, seu apoio ao Golpe Militar de 1964. Entretanto, o espectro da ditadura militar escondido nas entranhas deste que é o maior grupo midiático do Brasil não cessa de assombrar. Como disse o filósofo Vladimir Safatle em entrevista à Agência Pública no último dia 9 de outubro, “o Brasil é a prova mais cabal de que quando você não acerta suas contas com a história, a história te assombra”.

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Jeana Laura da Cunha Santos é Pós-doutoranda no POSJOR/UFSC e pesquisadora no objETHOS.