Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Jornalistas (profissionais), uni-vos!

O debate sobre a obrigatoriedade do diploma específico para o exercício do jornalismo no Brasil extrapolou todos os limites da razão, da ética e da honestidade intelectual. E se transforma num emaranhado confuso de aleivosias, sob o pesado silêncio dos jornalistas profissionais e dos estudantes de comunicação.

O reconhecimento do diploma, conquista que fundamentou o aprimoramento do jornalismo brasileiro, colocando limites na picaretagem que campeava nos tempos de Assis Chateaubriand e seus ‘carteiraços’, está sob sério risco de desaparecer, sob os ataques de candidatos preguiçosos a uma profissão digna, construída com sacrifícios de vidas inteiras dedicadas à busca da verdade e com o suporte dos proprietários dos meios de comunicação e seu exército de yes-men.

Os polemistas sempre a postos para um bate-boca sobre qualquer assunto vão odiar a afirmação, mas esse debate não tem qualquer nobreza.

Ele nasceu no final dos anos 1980, quando a Folha de S.Paulo completava a reforma gráfica originada na colorização do jornal: em meio aos cálculos de custos, a direção do jornal constatou que havia criado novas seções de serviços, como os guias de lazer, que podiam ser produzidas por um digitador razoavelmente alfabetizado.

Acontece que não se podia simplesmente colocar na função de checador de horários alguém que não fosse jornalista, pois aqueles cadernos deveriam ser considerados material jornalístico, que se beneficia de facilidades fiscais.

Por outro lado, na ocasião o Sindicato dos Jornalistas do estado de São Paulo iniciava uma agressiva campanha de consolidação do piso salarial, o que apontava para as empresas jornalísticas a perspectiva de aumento de custos, por ter que manter jornalistas em todas as funções consideradas jornalísticas, até mesmo para a troca das tabelas de sessões de cinema e horários de funcionamento de botecos. No meio dessa disputa, dirigentes do sindicato questionaram a legalidade do cargo do diretor de Redação da Folha, Otavio Frias Filho, alegando que ele incorria no exercício ilegal da profissão de jornalista.

Crivo da direção

Foi o que bastou para que a exigência do diploma se tornasse questão de honra para as empresas de comunicação. Por iniciativa da Folha, o tema se transformou em ‘cavalo-de-batalha’ da Associação Nacional de Jornais. Assim, uma picuinha pessoal respaldada pelo interesse em cortar cursos da Redação se transformou em questão constitucional: ‘juristas’ sempre dispostos a ficar de bem com os donos de jornais foram sacar na infinita criatividade humana a idéia de que a restrição do exercício de atividade de imprensa a jornalistas diplomados e aos anteriormente registrados como profissionais é um atentado à liberdade de expressão.

Como sempre, a chamada imprensa – nomeada aqui como as empresas de comunicação – lança mão de princípios elevados para justificar a defesa de seus interesses, confundido liberdade de expressão com liberdade de acesso aos meios de comunicação.

Afirma-se, e muitos aceitam a aleivosia, que, sem a obrigatoriedade do diploma, qualquer indivíduo alfabetizado terá acesso às páginas dos jornais para expor suas opiniões.

Ora, qualquer indivíduo pode, por intermédio das seções de correspondência, desde que o editor considere conveniente publicar suas idéias, assim como acontece nas seções de artigos e nas reportagens: o que define o que será ou não publicado não é a posse de um diploma de jornalista, mas a aprovação dos editores ao conteúdo proposto. Tudo passa por um crivo de pressupostos centralizados na direção de cada jornal, e é essa concentração do poder de editar que limita a liberdade de circulação de idéias no Brasil, não a exigência do diploma.

Matéria controversa

Os defensores da desregulamentação da profissão de jornalista também costumam citar o julgamento do caso do Colegiado de Periodistas de Costa Rica, feito em 1985, no âmbito da Corte Interamericana de Direitos Humanos, quando foi considerado que a restrição ao exercício do jornalismo naquele país aos membros do Colegiado era incompatível com o Artigo 13 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos.

Para começo de conversa, conviria examinar a fragilidade da própria Corte, vulnerável às pressões da Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP) e criticada até mesmo por um de seus fundadores, o magistrado Máximo Cisneros. No voto em separado que proferiu durante o julgamento do caso do Colegiado de Costa Rica, Cisneros lamentou que o esforço de seus integrantes ‘não tem sido suficiente para evitar a sensação de frustração que sinto ao retirar-me [era seu último julgamento] sem que a Corte tenha tomado conhecimento de nenhum caso de violação de Direitos Humanos, não obstante a penosa realidade de nossa América nesse campo’.

Um debate sério deveria, portanto, passar pela legitimidade da Corte, que se calara diante das ditaduras de todo tipo, à direita e à esquerda, que maltratavam o continente, e se empenhava, com amplo respaldo dos jornais associados à SIP, em discutir o direito de colegiação dos jornalistas da Costa Rica.

No entanto, passemos por cima disso e examinemos em si mesma a decisão que os inimigos do diploma querem transformar em ‘jurisprudência internacional’. Recomenda-se, a quem queira discutir mais profundamente o tema, observar que a decisão sobre o Colegiado de Periodistas de Costa Rica não tem muitas semelhanças com a legislação que regulamentou a profissão no Brasil. Em comentário que acompanhou seu voto, um dos juízes da Corte Interamericana de Direitos Humanos, Rafael Nieto Navia, observou que o Colegiado não podia ser um instrumento de regulamentação da profissão proibindo o acesso à atividade jornalística de pessoas que não pertencessem ao seu quadro de associados, por sua natureza específica. Ele se referia a uma instituição que nada tem a ver com o estatuto do diploma de jornalismo existente no Brasil.

Entre os objetivos do Colegiado de Costa Rica podiam ser alinhados:

(…) respaldar e promover as ciências da comunicação coletiva; defender os interesses de seus associados, individual e coletivamente; apoiar, promover e estimular a cultura e toda atividade que tenda ao desenvolvimento do povo da Costa Rica; gestionar ou definir, quando possível, os sistemas de assistência médico-social pertinentes para proteger seus membros quando em situação de enfermidade, velhice ou morte de parentes próximos, ou quando seus familiares se vejam em dificuldades [extensivo a esposa, filhos e pais]; cooperar com todas as instituições públicas, sempre que possível, quando estas o solicitem ou a lei o impõe; manter e estimular o espírito de união entre os jornalistas profissionais; contribuir para aperfeiçoar o regime republicano e democrático, defender a soberania nacional e as instituições da nação e pronunciar-se sobre problemas públicos, quando assim o considerar conveniente.’

Como se vê, esse estatuto se parece mais com o dos Conselhos Regionais de Corretores de Imóveis ou o da Ordem dos Advogados do Brasil do que o da legislação que define o exercício da profissão de jornalista entre nós. No entanto, não ocorre a ninguém discutir a constitucionalidade da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) nos muitos privilégios que representa para seus membros, sendo uma entidade pública de caráter corporativo como o Colegiado de Periodistas de Costa Rica. Portanto, a decisão usada como argumento pelos inimigos do diploma de jornalismo não se presta como ‘jurisprudência’ para o caso brasileiro. Trata-se, no mínimo, de matéria controversa.

Falta fibra

A decisão, por unanimidade, da Corte Interamericana de Direitos Humanos, diz explicitamente que a colegiação obrigatória de jornalistas, ‘enquanto impeça o acesso de qualquer pessoa ao pleno uso dos meios de comunicação social como veículo para expressar-se ou para transmitir informação, é incompatível com o artigo 13 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos’.

Ora, para constatarmos a aplicabilidade da decisão ao caso brasileiro, basta levantar o pressuposto da obrigatoriedade do diploma: que liberdade de acesso terá um cidadão não jornalista, ou não avalizado por um diploma de jornalismo, ‘ao uso dos meios de comunicação social como veículo para expressar-se ou para transmitir informação’? A mesma liberdade que tem hoje, com a obrigatoriedade do diploma, pois quem decide o que será publicado e que autores terão acesso à produção do jornal ou do noticiário por TV ou rádio (ou site de empresa de comunicação na internet) é o dono da empresa, por intermédio de seus editores de confiança. Enfim, o filtro para acesso aos meios de comunicação social não é o diploma, mas o critério ideológico ou de interesses da empresa de comunicação.

Aliás, outro juiz da Corte Interamericana de Direitos Humanos, Pedro Nikken, observa em seu voto em separado, não crer que…

‘…a supressão pura e simples das leis da colegiação [direito de organização dos jornalistas], nos países onde existam, se traduza necessariamente em uma melhora das possibilidades reais de expressão e informação (…). Não creio que seria justo nem prudente interpretar a opinião da Corte como sinalizando que a colegiação [de jornalistas] limita a liberdade de expressão e que basta eliminar essa colegiação para restabelecer automaticamente a dita liberdade (…). A supressão da colegiação, por si, pode conduzir a outorgar maior poder de ‘controle particular’ a uns poucos empresários da imprensa, sem proveito especial para a comunidade e sem que haja nenhuma segurança de que se abrirá o acesso aos meios de difusão a todos não colegiados. Pode, mais propriamente, favorecer uma incondicionalidade dos jornalistas, até à margem da ética, em favor do patrão, coisa essa que também poderia chegar a lesionar os valores preservados pelo Artigo 13 [da Convenção de Direitos Humanos citada].

Em sua desonestidade intelectual, os defensores do fim da obrigatoriedade do diploma omitem esses detalhes, o que reduz ainda mais a nobreza desse debate.

Eles produzem um quase monólogo, diante do silêncio dos estudantes de Jornalismo. De qualquer forma, fossem outros os tempos e os estudantes estariam se organizando para mostrar aos legisladores que não devem produzir esse retrocesso. Mas parece que os estudantes de hoje, eventuais jornalistas no futuro, estão com medo de cair numa ‘lista negra’ (no sentido de ausência de luzes, não de etnia, por favor) e ser eliminados dos concorridos sistemas de admissão nas grandes redações. Ou não têm fibra bastante para defender seus interesses.

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Jornalista