CINEMA
Um vale de lágrimas
‘Em Linha de Passe (Brasil, 2008), que estréia nesta sexta-feira, cinco bons atores interpretam com sinceridade os protagonistas de uma história não muito sincera. Sandra Corveloni, premiada em Cannes por este papel, é Cleuza, empregada doméstica e mãe de quatro filhos, grávida do quinto. Os três mais velhos tentam achar seu lugar. Dario (Vinícius de Oliveira, de Central do Brasil) quer ser jogador de futebol, mas não passa nas ‘peneiras’. Dênis (João Baldasserini) é motoboy e pai de um menino, que não ajuda a sustentar porque não quitou a motocicleta. Dinho (o excelente José Geraldo Rodrigues) virou evangélico e trabalha como frentista para um patrão grosseiro. Reginaldo (Kaíque de Je-sus Santos), o caçula, é filho de um motorista de ônibus negro – e, como não conhece o pai nem se parece com os irmãos, sente-se um estranho. Cleuza enfrenta dificuldades adicionais: a patroa não a registrou e agora quer substituí-la, pelo menos até ela dar à luz. Nada vai bem para ninguém. E ainda vai ficar muito pior, para que os diretores Walter Salles e Daniela Thomas possam expor suas teses.
A despeito do estilo semido-cumental, as desditas dessa família têm o ar inconfundível das coisas impostas pelos criadores às suas criações com certos propósitos – aqui, evocar aquele mundo caro à ficção nacional, no qual os pobres podem até tentar levantar a cabeça, mas serão sempre esmagados. Para carregar nas tintas, é preciso suprimir os meios-tons. Cleuza e seus filhos são descritos em detalhes; os outros personagens são tracejados, para que se possa preenchê-los como a ocasião requer. A patroa que parece gentil depois se revelará, fora de cena e por implicação, uma péssima patroa. Dario é apresentado às drogas por amigos de classe média. O pastor promete a Dinho milagres que nunca acontecerão. O auge vem quando Dênis, o motoboy, comete um assalto e, na fuga, bate em um SUV. Ele entra nesse símbolo do excesso e ameaça de morte o motorista, que usa terno. Dênis não está armado; o motorista não sabe disso, mas o espectador sabe, e os diretores calculam que esse dado, mais o fato de que afinal a vítima é libertada, basta para que se desculpem o rompante e a frustração de Dênis. Não é demais ressaltar, num filme ou fora dele, que a desigualdade social brasileira resulta em grande parte de insensibilidade. Mas pedir que se dirija o dó ao assaltante é um outro tipo de insensibilidade. É imaginar que o cidadão de classe média é sempre um pequeno-burguês reacionário que explora alguém e não deve queixar-se ao virar caça; e que quem vive sem dinheiro está escusado por eventuais falhas no sentido de moralidade. Isso é determinismo. E aplicá-lo a um personagem não é compreendê-lo ou aceitá-lo. É desumanizá-lo.’
TELEVISÃO
Marido e monstro
‘Numa cena que irá ao ar daqui a algum tempo na novela A Favorita, Léo – o marido machista e violento interpretado por Jackson Antunes – levará um fora de Stela (Paula Burlamaqui), a vizinha boazuda que ele vem azarando sem pudor diante dos filhos e da mulher, Catarina (Lilia Cabral). ‘Stela vai lhe dizer: ‘Eu gosto é da Catarina, não de você’, adianta o noveleiro João Emanuel Carneiro. O autor ainda não definiu no que vai dar essa investida lésbica (‘Por enquanto, só consigo ver a Catarina como hétero’). Mas não deixa dúvida quanto ao destino do brutamontes: ele sofrerá uma punição severa. Léo é um personagem que causa asco no público. Ele trata a mulher como escrava e não perde a chance de humilhá-la. Ao flagrá-la dançando forró na casa do sogro (o dinossauro comunista Copola, interpretado por Tarcísio Meira), ordenou que a ‘vadia’ voltasse para casa. Também não perdoou quando Catarina, cujo visual combina meião branco com chinelão, resolveu se arrumar um pouco: ‘Você, uma mulher bonita? Você bebeu?’. O mais angustiante são as cenas em que Léo surra a mulher e os filhos: o menor perdeu a fala de tanto apanhar e a mais velha, a adolescente Mariana (Clarice Falcão), já levou um tabefe numa discussão. Na semana passada, depois de saber que a garota está grávida, a besta-fera proclamou: ‘A partir de hoje, não tenho mais filha’.
Maridos violentos não são novidade nas novelas da Globo. Em Mulheres Apaixonadas (2003), de Manoel Carlos, o ator Dan Stulbach fazia um sujeito com pinta de galã e mente de psicopata que aplicava nada menos que raquetadas na mulher, vivida por Helena Ranaldi. Manoel Carlos usou o tema para uma das suas campanhas de ‘merchandising social’, dando voz a entidades que denunciavam a violência contra a mulher. Embora não pretenda fazer esse tipo de militância, Carneiro também expõe o problema com contundência. Catarina é uma mulher que se nega a ver a realidade. Pode até ensaiar suas esperneadas, mas no fim abaixa a cabeça e volta para a ‘casinha’, como diria Léo. Carneiro diz se inspirar nos dramas de duas ex-empregadas domésticas suas. ‘Uma delas contava que era empregada minha e do seu marido. A diferença é que, na minha casa, ela não apanhava’, afirma.
Semanas atrás, Jackson Antunes pagou um preço por encarnar o monstro: um sujeito mais enfezado o agrediu e o ator sofreu uma trombose na perna esquerda. ‘Caí na gargalhada quando ele começou a me xingar, pois pensei que fosse uma pegadinha da turma do Pânico. E acabei levando um empurrão’, diz. O mineiro de 48 anos tem outros tipos violentos no currículo – o matador Damião, de Renascer (1993), é um deles. Quando está ‘à paisana’, curiosamente, Antunes é o antípoda disso, já que exibe um jeitão de caipira simpático (ele mora num sítio e adora plantas e bichos). Seu segredo é ‘se entregar loucamente’, como diz, ao personagem. Para viver Léo, o ator engordou 14 quilos. ‘Não queria que as mulheres dissessem: ‘Quero apanhar desse caboclo gostoso’, ele explica. Consciência social é isso aí.’
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