Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O confronto milenar entre conhecimento e credo

Texto originalmente publicado pelo objETHOS.

Imagem: Portal G1, 29/10/2018.

O jovem teórico Adelmo Genro Filho, que partiu precocemente aos 38 anos, no verão de 1988, nos legou uma obra lapidar que compreende o jornalismo como uma forma social de conhecimento. Isto significa, pensar, conceber e praticar o jornalismo como um tipo de conhecimento relevante, espécie de matéria-prima essencial à convivência democrática na sociedade contemporânea. Seu objeto de estudo foi o jornalismo impresso diário, tradicional.

Genro Filho partiu de três questões de fundo para pensar o jornalismo como conhecimento: a) necessidade social da informação jornalística; b) estrutura da notícia em relação com e na realidade; c) relação entre jornalismo e ideologia. São questões que precisamos retomar, no âmbito da pesquisa e do debate público sobre as promessas seculares do jornalismo: os compromissos com a verdade e a defesa da democracia, na era das chamadas “fake news” ou da pós-verdade.

Em recente encontro nacional de pesquisadores e pesquisadoras de jornalismo, promovido pela SBPJor, em S. Paulo, a professora e pesquisadora Christa Berger (aposentada, UFGRS) cunhou uma expressão que se encaixa perfeitamente como síntese de uma análise sobre o papel da mídia de referência (hegemônica) no processo eleitoral recentemente concluído no país. Christa observa que essa tal “promessa secular” foi solenemente ignorada pela mídia jornalística tradicional, que se converteu, ao longo da história, numa espécie de “inimigo íntimo da democracia”.

Desconstrução da democracia e antipetismo

Com efeito, a mídia jornalística tradicional (notadamente os grandes grupos como Organizações Globo, Folha de S.Paulo, Estado de S. Paulo e as redes de TV Band, SBT e Record), com suas empresas coligadas e afiliadas, nacionalmente, passaram os últimos 15 anos vocalizando e regendo um coro que entoava um mantra de uma nota só: todos os partidos são iguais. Foram decisivas no golpe que afastou do Executivo uma presidenta eleita democraticamente pelo voto soberano, em agosto de 2016.

Seletivamente, o Partido dos Trabalhadores (PT), foi colocado na vitrine do tribunal midiático e seus períodos breves de governo, no modelo de presidencialismo de coalização com todos os seus vícios, contradições e imperfeições, foram satanizados muito mais pelos seus acertos (políticas de inclusão social, com destaque). Ao PT foi atribuída, por exemplo, a origem da corrupção no Brasil: precisamente no dia 1º de janeiro de 2003, com a posse do ex-presidente Lula, claro. Antes, em seus mais de 500 anos, nenhum caso de corrupção houvera sido registrado nos anais da mídia hegemônica. Até uma expressão foi cunhada pelos colunistas políticos, dos diversos veículos, para explicar: “corrupção sistêmica”.

Em 15 anos, investigações sobre corrupção (casos “Mensalão – AP 470” e “Petrobras”) foram usados exaustivamente para desgastar o campo democrático e o sistema de representação política (“é tudo farinha do mesmo saco”), com o PT à frente. Seus eventuais envolvimentos foram sempre tratados de maneira superlativa e, no fundo, a desconstrução democrática foi a obra mais vistosa que o oligopólio de mídia legou ao país.

A partir de março de 2014, com o advento da “Operação Lava Jato”, a ação política da mídia, em conluio com o Ministério Público Federal (MPF), Polícia Federal (PF) e o Judiciário Federal militante (liderado pelo juiz Sérgio Moro), ganhou uma dimensão de espetáculo jamais vista. Sob liderança da mídia, iluminando o cenário e repetindo os releases produzidos ora pelo MPF, ora pela PF, os diversos veículos de comunicação assumiam a um só tempo os papéis de promotor, júri e julgador dos supostos corruptos e corruptores, pela primeira vez presos (ainda que em sua maioria já em liberdade, após as suspeitas “delações premiadas”). A imagem do dinheiro jorrando pelo ralo, veiculada “ad nauseam” para os milhões de telespectadores do Jornal Nacional (TV Globo) determinou o golpe final na democracia e na política, abrindo espaço para aventureiros e “messias” de quaisquer espécies.

Falsa polarização e fake news: conhecimento x credo

Não é exagero afirmar que a história do jornalismo, da política e o do que ainda restou da democracia representativa brasileira sofreram sensíveis impactos e, muito provavelmente, jamais serão as mesmas depois dos eventos que marcaram as eleições 2018.

O tsunami das notícias falsas (rede da mentirada ou “fake news), produzidas em escala industrial por empresas chegou derrubando o que ainda restava da credibilidade da mídia tradicional, e introduzindo na disputa política um elemento de desequilíbrio na decisão de voto jamais visto. Conforme denúncia apurada e publicada pelo maior jornal de referência do país (Folha de S.Paulo, ed. 18/10/2018 — “Empresários bancam campanha contra o PT pelo WhatsApp” — Fonte: https://bit.ly/2NKhptj), em reportagem assinada pela repórter Patrícia Campos Mello, o valor do caixa 2 para comprar este serviço de disparo de mensagens, junto ao WhatsApp, chegou aos R$ 12 milhões. O crime de Caixa 2 ainda espera por uma improvável investigação de parte do Tribunal Superior Eleitoral (TSE).

A novidade não é o fenômeno das notícias falsas, mas sua escala de produção industrial e, de forma radical, o potencial de circulação social da informação falsa, simulacro de notícia corrompendo a opinião do público: em agosto de 2018, o WhatsApp tinha 120 milhões, e o serviço de “disparos de mensagem” sem dúvida foi decisivo, na reta final das eleições. A imprensa brasileira (e por que não dizer, a mundial?) está definitivamente diante do enigma da esfinge: “decifra-me ou te devoro”.

Não basta mais o rigor da apuração, o paradigma da verdade, a qualidade final do produto jornalístico — seja em texto, áudio, vídeo, imagem ou hipertexto para web. Em qualquer tipo de produção de conhecimento (do científico ao senso comum) existe sempre, como critério essencial, a possibilidade da refutação. Quando se trata do público alimentado pelas fake news isto não se aplica. Aqui, no território incensando pela mentira, basta o meu “viés de confirmação” e o credo. No primeiro caso, como explica a pesquisadora Claire Wardle, trata-se da “tendência humana de se lembrar, interpretar ou pesquisar por informações que confirmem crenças ou hipóteses iniciais”.

Os dados publicados organização Avaaz comprovam que “98,21% dos eleitores do presidente eleito Jair Bolsonaro (PSL) foram expostos a uma ou mais notícias falsas durante a eleição, e 89,77% acreditaram que os fatos eram verdade” (Fonte: https://bit.ly/2QfSQqv). O estudo foi realizado “pela IDEA Big Data de 26 a 29 de outubro com 1.491 pessoas no país, e analisou Facebook e Twitter”. Só para ficar no exemplo mais cabal de mentira, consumida como absoluta “verdade”: “85,2% dos eleitores do Bolsonaro entrevistados leram a notícia que Fernando Haddad implementou o kit gay e 83,7% acreditaram na história” — enquanto entre eleitores de Haddad, 61% viram a informação e somente 10,5% acreditaram nela.

No reino do ódio e da fantasia, embalado pelas notícias falsas, inexiste qualquer resquício de conhecimento. É o império do credo em sua mais terrível acepção. Não há possibilidade de “diálogo”, de contraponto, de desconstrução das supostas “verdades”, que circulam em milhões de canais privados (celulares) ou ainda em espaços nobres como as redes sociais — que reúnem usuários na escala de milhões (Facebook com mais de 127 milhões, chegando aos 50 milhões no Instagram, e algo próximo de 48 milhões no Twitter).

O jornalismo hegemônico segue contribuindo, decisivamente, para a desconstrução da democracia e da política quando chama para o palco do Jornal Nacional, um dia após o 2º turno das eleições (29/10), o presidente eleito e assiste, passivamente como se for cúmplice, Jair Messias Bolsonaro repetir, pela undécima vez, duas mentiras que circularam em milhões de smartphones de eleitores e eleitoras: Haddad criou ‘kit gay’ e a Câmara Federal realizou seminário LGBT infantil (Veja aqui: https://bit.ly/2PO9PTN). O Portal G1, do mesmo grupo, uma hora depois de encerrado o telejornal, estampava inutilmente: “É #FAKE que Haddad criou ‘kit gay’ e que Câmara realizou seminário LGBT infantil” (Fonte: https://glo.bo/2qgztlC).

Ante o principal protagonista e beneficiário, eleitoralmente, da rede de mentiras, o jornalismo brasileiro, neste caso “representado” pelos apresentadores William Bonner e Renata Vasconcellos, fez um silêncio cúmplice. De maneira geral, esta omissão chegou a um nível mais profundo ao chancelar a invisibilidade da ação doutrinária das igrejas evangélicas neopentencostais, comandadas pelo bispo-empresário Edir Macedo, dono da Rede Record de televisão e líder da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), que edita a “Folha Universal”, com seus quase três milhões de exemplares semanais, circulando nos templos e centenas de cidades, especialmente no interior do país. Alguma reportagem sobre esse poder de doutrina e dominação das almas? O recorte do Ibope, quando investigou o voto por religião, diz muito sobre o resultado e o impasse colocado para o Jornalismo, a democracia e a política no Brasil: no dia 15 de outubro, 66% dos eleitores evangélicos tinham intenção de votar em Bolsonaro, contra apenas 24% em Haddad.

Em última análise, o advento do fenômeno das notícias falsas, tanto na sua produção industrial quanto pelo robusto potencial de circulação social, configura uma problemática epistemológica de fundo: é a batalha milenar do conhecimento contra o credo. Não há respostas simples e, neste momento, eu não consigo visualizar uma saída de emergência ou solução simples. Urge o debate profundo, a produção de conhecimento (nas universidades e centros de pesquisa) para entender o fenômeno, a ação vigorosa da sociedade civil organizada em seus múltiplos segmentos buscando respostas para enfrentar a complexa questão que coloca a democracia contemporânea em xeque, quase xeque-mate.

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Samuel Lima é jornalista, professor do Departamento de Jornalismo da UFSC e pesquisador do objETHOS.