Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Desertos de notícias, oásis de desinformação

Em 2017, uma pesquisa desenvolvida pelo Instituto IPSOS colocou o brasileiro no segundo lugar de um ranking mundial com relação à percepção de sua realidade. Em 2018, o levantamento do Atlas da Notícia mostrou que 30% dos municípios do Brasil correm risco de se tornar, ou são, desertos de notícias. Mesmo com um ano de diferença, a ligação entre os dados se dá de maneira clara: não há como reconhecer uma realidade sobre a qual não se tem acesso. E não estamos falando de uma realidade em nível nacional apenas, mas de uma realidade local, com a qual os cidadãos têm contato e que influencia diretamente em suas ações.

Para exemplificar essa influência, trazemos o programa Mais Médicos. No âmbito nacional, os noticiários mostraram as consequências da saída de Cuba do programa em todo o Brasil e, com um foco pós-eleições, a forma como a questão estava sendo tratada pelos atuais e futuros gestores. Se alguém vive em um desses desertos de notícias, regiões sem imprensa local, e teve acesso a apenas uma visão geral dessa questão, ela pode até entender, em linhas gerais, alguns problemas que a saída desses profissionais traz ao país. Mas, e se essa cidade conta com o atendimento desses médicos, a imprensa nacional virá mostrar a importância desses profissionais e os impactos de sua ausência no lugar onde ela vive? Provavelmente não, entretanto para que ela compreendesse melhor as implicações dessa saída, seria bem mais útil traduzir a questão para a sua realidade.

É importante lembrar, também, que as consequências não são só no nível informativo. O perigo de não conhecer a realidade local vai além de “apenas” saber o que acontece na minha cidade. Ao desconhecer minha realidade, as tomadas de decisões são afetadas; as pautas locais, que permeiam o debate público, ficam sem espaço social; e as temíveis Fake News ganham um campo valioso para se propagar.

É importante destacar que Fake News, por mais que sejam apresentadas, no português, como notícias falsas, são muito mais prejudiciais para a informação do que a tradução sugere. Um erro jornalístico pode tornar uma notícia falsa, mas trata-se de um erro, ou seja, algo não intencional. Um dado retirado de seu contexto original também torna uma notícia falsa, mas o dado continua sendo verdadeiro.

Mas, então, como explicar o que são as chamadas Fake News? Para Eugênio Bucci, em seu texto “Pós-política e corrosão da verdade”, a tradução que condiz melhor com a ideia é notícias fraudulentas: notícias propositalmente falsas e que visam a prejudicar algo ou alguém. E a opção por traduzir dessa forma não é apenas um capricho da linguagem. Para a Academia de Enriquecimento da Língua Francesa, que passou a traduzir Fake News como Infox, um neologismo criado a partir das palavras informação e intoxicação, alterar a forma como o termo é apresentado é uma maneira de atrair a atenção da população para a questão.

Já que abordamos a questão de termos estrangeiros, uma maneira de entender esses desertos de notícias é através da editoria de jornalismo internacional.

Entre o internacional, o local e o falso

A estrutura da editoria de jornalismo internacional é constituída, em linhas gerais, por duas premissas. A primeira diz respeito a uma identificação do acontecimento, ou seja, para que uma notícia figure nessa editoria é preciso que, de alguma forma, aproxime-se da realidade local do leitor, que apresente algum reflexo no país onde o texto é publicado. Sendo assim, um país só estará no noticiário estrangeiro se impactar a realidade do meu país e, com aproximadamente 195 países no mundo, é de se esperar que nem todos (ou melhor, nem 20%) estejam representados, pois há países que influenciam mais em um território que outros.

A segunda premissa refere-se ao denominado fator inesperado: uma guerra, uma tragédia ambiental ou humana, questões de política externa. Esse fator assegura a alguns países, que normalmente não são abordados na editoria, de alguma forma, estar representados.

Estudando o noticiário estrangeiro no Brasil, é possível perceber como ele apresenta mais notícias sobre os Estados Unidos da América e países europeus do que sobre países da África ou da Oceania, por exemplo. Há duas possíveis explicações que se ancoram nas premissas que destacamos aqui: uma se relaciona com o poder que essas regiões têm em nível mundial, que vai do poder econômico até o militar, e que age diretamente em todas as questões relacionadas ao exterior; a segunda é a facilidade de aproximar esses acontecimentos com a nossa realidade, uma vez que a política externa brasileira tem uma tendência maior de relação com esses locais do globo.

Essa estrutura do noticiário motiva a leitura dos acontecimentos internacionais, pois é possível ver como uma decisão tomada pelo presidente dos EUA vai afetar, por exemplo, a economia do país. Já se a editoria colocasse apenas notícias do Butão, um país cujos acontecimentos não têm um impacto tão direto no Brasil, dificilmente o jornalismo internacional despertaria a atenção dos leitores. Quanto maior a atenção que uma questão desperta, maior vai ser a busca por mais informações acerca do tema em diferentes veículos.

Agora, imagine que em um país não exista imprensa nacional e toda a notícia que ele recebe vem de outras nações ou de redes de comunicações globais. Sem ter uma mídia local, não há como traduzir os acontecimentos mundiais para a sua realidade e nem como saber o que acontece em seu território, já que esse país só será noticiado para ele mesmo quando algo de inesperado acontecer. Além disso, se as notícias não interferem na minha realidade, logo não despertam minha atenção, dificilmente irei procurar mais de um veículo para me informar. Basicamente os desertos de notícias são esses “países” sem imprensa local, e os efeitos são danosos para seus moradores.

Sem saber o que acontece na sua cidade, a população acaba por ver as pautas políticas nacionais, por exemplo, e dificilmente irá compreender como isso impacta no seu cotidiano. Além disso, assuntos relevantes para determinadas localidades não são abordados na mídia nacional, o que leva a um desinteresse pelos noticiários e gera boatos que, de certa maneira, suprem essa falta de informações. Sem assuntos relevantes para o dia e sem interesse pela informação de outros locais, acaba-se por acessar menos veículos de comunicação. E com o acesso a menos fontes informativas, menor será a capacidade de percepção de notícias fraudulentas.

Esse é o resultado a que chegou uma pesquisa conduzida pelo projeto de extensão Compreender os letramentos locais para (in)formar novos leitores, do Departamento de Ciências da Comunicação, da Universidade Federal de Santa Maria campus Frederico Westphalen (RS), que mostrou que quanto mais veículos informativos uma pessoa acessa, maior é sua capacidade identificação de notícias fraudulentas. A partir de manchetes retiradas de redes sociais, o estudo Percepção de Notícias Falsas investigou como está a propensão para identificar Fake News nos usuários da internet, de acordo com seus hábitos de letramentos midiáticos.

Para a classificação dos níveis de percepção, foi construída uma escala numérica, que varia do índice de percepção nulo ao elevado, a partir da atribuição de pontos para cada manchete apresentada na pesquisa. Essa pontuação foi construída com base em critérios jornalísticos, tais como o porte do veículo onde a manchete foi divulgada, a forma como a linguagem foi empregada, o espaço geográfico e o marco temporal. Desse modo, foi possível relacionar os diferentes níveis de percepção aos fatores que podem ser apontados como influenciadores na identificação dessas notícias. Ao todo, o estudo contou com a participação de 110 de pessoas, de seis Estados da federação. A pesquisa foi aplicada em meio eletrônico entre os dias 25 de junho e 31 de julho de 2018. A imagem a seguir apresenta a escala utilizada para a análise dos dados obtidos.

Os índices na escala variam entre o número máximo e o mínimo de acertos possíveis (Fonte: elaborado pelos autores).

Os dados obtidos na pesquisa demonstram como algumas questões ligadas à educação se relacionam com os níveis de desinformação. Em linhas gerais, o estudo mostrou que pessoas que questionam os textos que lhes são apresentados e que mantêm um hábito regular de leitura apresentam uma capacidade de percepção maior do que as que afirmam não ler ou não questionar o que lhes é apresentado. Além disso, fatores como a renda e a formação escolar também impactam nos índices de percepção.

Entretanto, como o foco deste artigo são os desertos de notícias, destacamos como os acessos a diferentes veículos contribui para a identificação de Fake News. A seguir, apresentamos um gráfico que serve para demonstrar visualmente a questão.

(Fonte: elaborado pelos autores).

A partir da imagem, é possível observar que, se uma pessoa costuma informar-se apenas por um veículo, ela está mais suscetível a receber uma Fake News e tê-la como uma notícia verdadeira. Em média, as pessoas que marcaram apenas um veículo como meio de acesso à informação, marcaram corretamente oito manchetes; enquanto as que assinalaram mais de cinco veículos classificaram adequadamente onze manchetes.

Como argumentamos durante o artigo, os desertos de notícias contribuem para a propagação das Fake News por vários motivos, dentre eles o fato de que, muitas vezes, as redes nacionais consistem nos únicos meios de informação. Assim, em um município sem veículos informativos a única forma de saber os acontecimentos locais é a partir da conversa com conhecidos, e um boato dificilmente vai ser desmentido já que não há meios suficientemente capazes de atingir toda a sociedade local. Como já mencionamos anteriormente, uma notícia fraudulenta tem por objetivo prejudicar algo ou alguém. Por exemplo, se um político divulga uma informação falsa sobre o opositor, para desmentir esse boato se levaria um tempo muito maior do que se houvesse imprensa local.

Por fim, outro aspecto que destacamos da pesquisa refere-se à forma como a imprensa local pode servir como promotora da democracia. Normalmente, veículos locais de informação não são ligados a grandes conglomerados de mídia. Desse modo, esses veículos abrem espaços para opiniões diferentes e colocam os membros de uma comunidade como geradores de conteúdo, invertendo a lógica de produtor-consumidor que as grandes empresas de comunicação sustentam. Nessa perspectiva da comunicação comunitária, o público do veículo passa a ser visto como um cidadão que precisa ser informado e que tem direito de se expressar nesses locais comunitários, ou seja, a mídia local, além de servir como meio de combate às Fake News, também é formadora de um público com senso crítico, capaz de cobrar mudanças sociais e questionar aquilo que lhes é apresentado.

Em linhas gerais, os desertos de notícias representam uma grande ameaça à pluralidade de vozes na sociedade e contribuem para a propagação de Fake News. Logo, é importante repensar como a Comunicação está sendo construída no Brasil e propor políticas públicas para o incentivo de novos meios de comunicação locais. Além disso, tem sido cada vez mais necessário que a Comunicação, e os comunicadores, repensem seu papel na sociedade, utilizando os meios de divulgação de informação para promover o debate social e para combater não só a desinformação, mas a disseminação de notícias tendenciosas.

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Wellington Felipe Hack  é estudante de jornalismo na Universidade Federal de Santa Maria-RS.

Marluza da Rosa é professora do Departamento de Ciências da Comunicação da Universidade Federal de Santa Maria-RS.