Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A política venezuelana na grande mídia

(Foto: Efecto Eco/Creative Commons)

Nos últimos dias, a Venezuela tem dominado os noticiários internacionais da grande mídia brasileira. Em grave crise econômica e política, este país localizado na porção setentrional da América do Sul conta, atualmente, com “dois presidentes”: Nicolás Maduro, eleito pela população; e Juan Guaidó, autodeclarado presidente interino da Venezuela. Em âmbito global, Maduro conta com o apoio de duas influentes potências: China e Rússia. Guaidó, por sua vez, é reconhecido como Chefe de Estado venezuelano pelos Estados Unidos de Trump e pelo Brasil de Bolsonaro, entre outras nações.

Com dois governos disputando o poder na Venezuela, era de se esperar que a grande imprensa brasileira, seguindo os princípios básicos do bom jornalismo, concedesse espaços equivalentes para os dois lados do confronto. No entanto, infelizmente, não é o que tem ocorrido. Há um claro posicionamento dos principais grupos de comunicação em favor do governo interino autodeclarado de Guaidó.

Este jornalismo absolutamente tendencioso pode ser facilmente constatado ao analisarmos os conteúdos dos noticiários internacionais da mídia hegemônica. A própria alcunha de “ditador”, utilizada pelos principais órgãos de comunicação brasileiros para se referir a Maduro já se mostra incoerente, pois o presidente venezuelano não usurpou o poder ou realizou atitude similar, mas, conforme é do conhecimento de todos, ele foi escolhido pelo voto popular. Evidentemente, que a democracia venezuelana, tal como todo sistema assim intitulado, possui diversas falhas, mas daí a chamar Nicolás Maduro de “ditador” já é outra questão. Trata-se, portanto, de um jornalismo meramente ideológico, não comprometido com o relato minimamente imparcial dos fatos, feito exclusivamente para tentar induzir o público a aderir a uma determinada agenda política.

Outro fator controverso presente nas coberturas da grande mídia brasileira sobre a política venezuelana está relacionado às fontes utilizadas. A maioria dos materiais que chegam às redações da imprensa brasileira não são produzidas na própria Venezuela, são despachos das grandes agências internacionais de notícias, sediadas, “coincidentemente”, nas mesmas nações que apoiam o governo interino de Guaidó.

Em uma nação polarizada como a Venezuela, não é difícil inferir que tanto Maduro quanto Guaidó contam com o apoio de determinados setores da sociedade. No entanto, o que a mídia televisiva mostra é um Guaidó discursando e sendo saudado por populares (aliás, nem tão “populares” assim, pois se tratam de membros das classes médias e altas); e, em contrapartida, as falas de Maduro são apresentadas em seu próprio gabinete, gerando a impressão de um político isolado, sem apoio popular, o que, evidentemente, não condiz à realidade. Conforme mostram diversos órgãos da imprensa alternativa, em toda a Venezuela há inúmeras manifestações populares favoráveis ao governo chavista. Entretanto, alguém viu, ouviu ou leu algum relato sobre essas mobilizações na grande mídia brasileira? Eu também não. Diga-se de passagem, qualquer semelhança entre os seguidores de Guaidó com alguns de nossos compatriotas que vestiram verde e amarelo pouco mais de dois anos e meio atrás não é mera coincidência.

As imagens de Guaidó e Maduro na imprensa escrita também nos dão indícios das políticas editoriais tendenciosas. Enquanto as fotos de Guaidó apresentam um político sorridente, aguerrido, com o braço erguido como se estivesse em gestual de vitória, pronto para a batalha do “bem contra o mal”; Maduro geralmente é retrato com semblantes sombrios, “derrotado”, como se estivesse perdendo o controle de suas ações e de seu governo (a mídia brasileira tem o pernicioso hábito de transformar o cenário geopolítico em uma espécie de épico).
Sobre a crise alimentar venezuelana, as narrativas midiáticas concebem Guaidó como o sujeito que irá libertar a Venezuela para receber ajuda humanitária internacional, como o “presidente” que, em poucos dias, fez mais para o seu povo do que Maduro fez em seis anos, mas omitem que boa parte das venezuelanos hoje passa fome por causa do embargo imposto por Washington e pelo fato de que os grandes empresários retiram determinadas mercadorias dos supermercados em boicote ao governo chavista (qualquer semelhança com empresários tupiniquins, pouco mais de dois anos e meio atrás, também não é mera coincidência).

Não bastassem as manipulações midiáticas, nos últimos dias as redes sociais foram tomadas por vários “especialistas em política venezuelana”, que formulam os seus posicionamentos a partir das simplificações e maniqueísmos presentes nas principais redes de televisão brasileiras e nos grandes jornais de circulação nacional, sem ter a real dimensão geopolítica do que ocorre em nosso vizinho do norte.

A Venezuela é estratégica para o cenário geopolítico mundial porque tem uma das maiores reservas estimadas de petróleo do planeta. China, Rússia e Estados Unidos sabem muito bem disso. As grandes potências globais não estão interessadas sobre as reais condições de vida do povo venezuelano. Por fim, sempre é bom lembrar que geopolítica é uma temática demasiadamente complexa, está muito além dos dois minutos dos noticiários internacionais dos telejornais ou das “lacrações” no Facebook.

**

Francisco Fernandes Ladeira é mestre em Geografia professor do IFES – Campus Vitória. Autor (em parceria com Vicente de Paula Leão) do livro A influência dos discursos geopolíticos da mídia no ensino de Geografia: práticas pedagógicas e imaginários discentes, publicado pela editora CRV.