Trevas no paraíso é um raro caso de livro de autor reestreante. Sim, porque os contos aqui enfeixados foram, em sua esmagadora maioria, produzidos entre 1974 e 1978. Nesse curto período, Luiz Fernando Emediato venceu inacreditáveis 25 prêmios literários – incluindo o mais importante de todos à época, o cobiçadíssimo Concurso de Contos do Paraná –, publicou três livros e saiu da cena literária. Trocou a ficção pelo jornalismo e ganhou, com uma reportagem que virou livro (Geração abandonada, 1982), os prêmios Esso e da Sociedade Interamericana de Imprensa – SIP, e, por suas matérias sobre guerrilhas na América Central, o Rei de Espanha, da agência de notícias EFE. Criou ainda o fundamental Caderno 2 de O Estado de S.Paulo – cronista daquele suplemento, compilou seus melhores trabalhos em A grande ilusão, de 1992. Aos poucos, também se afastou da lida diária das redações, montou sua própria editora, virou consultor político.
Qual o motivo então de, agora, passado um quarto de século, reunir num só volume toda sua produção ficcional? A resposta é simples: propor uma reflexão sobre o momento em que vivemos, de profunda desagregação social e alienação intelectual, tomando como ponto de partida o período que, acredito, se desdobra neste, do Brasil sob a ditadura militar – as ‘trevas no paraíso’ a que se refere o título do livro. Como prosa de qualidade, os contos de Emediato retratam uma época específica, mas superam-na para além do documento de profunda dimensão humana: é pura literatura.
Jovem anônimo
Luiz Fernando Emediato nasceu em 1951 em Belo Vale, cidadezinha mineira próxima de Congonhas do Campo, a 75 quilômetros de Belo Horizonte. ‘Eu sou de família pobre. Meu pai trabalhava na roça, era camponês, só tem o curso primário. Até minha adolescência levei uma vida muito isolada em cidades do interior e no campo. Gostava muito de ler, mas não recebi nenhuma orientação, não era uma leitura metódica e organizada. Lia o que me caía nas mãos, desde pornografia até história em quadrinhos e, por acidente, Machado de Assis, que achei numa fazenda numa coleção muito velha.’
Foi esse adolescente alienado, autor de centenas de sonetos (‘…aos 19 [anos], já possuía cadernos e mais cadernos com quase 600 sonetos…’ ) que se viu guindado, subitamente, à condição de autor-revelação no Concurso de Contos do Paraná, em 1971. ‘No dia 15 de junho de 1971 eu tinha 19 anos e fui acordado pelo carteiro da cidade de Matozinhos, onde vivia, com a notícia de que tinha ganhado o prêmio.’ Diz que havia escrito, até então, três contos, exatamente o necessário para se inscrever no concurso. Um deles, ‘O Filho’, foi o contemplado.
Por irreverência ou ingenuidade, ao ser recebido em Curitiba por ocasião da entrega do prêmio, o escritor disse que o conto era plágio de um filme que havia assistido na televisão… A história – um homem estéril ouve, de sua mulher à mesa do almoço, que está grávida – não tem nada, realmente, de original. Mas o júri, presidido pelo grande incentivador do teatro brasileiro Paschoal Carlos Magno (1906-1980), houve por bem conceder a honraria ao jovem anônimo. Para o leitor ter a oportunidade de fazer suas próprias avaliações, incluí o conto nas páginas finais do livro.
O sucesso
Seduzido pelo sucesso proporcionado pelo prêmio no Paraná, Emediato abandona as pretensões de se tornar médico, muda-se para Belo Horizonte e entra para a faculdade de jornalismo (concluída entre 1972 e 1975). No segundo ano do curso é contratado pela sucursal do Jornal do Brasil e, concomitantemente, toma consciência da realidade que o cerca: descobre a política estudantil, as drogas, a censura, envolve-se com a literatura… Edita as revistas literárias Silêncio (censurada, virou Circus), entre 1973 e 1974, com Lúcia Afonso e Hugo Almeida, e Inéditos, em 1976, com Vladimir Luz e Ary Quintella.
O ano de 1977 o colocará, definitivamente, no centro das atenções. Desde fins do ano anterior anunciava-se que a editora do Pasquim, a Codecri, iria publicar um livro, Histórias de um novo tempo, reunindo seis promissores contistas ainda inéditos: Jéferson Ribeiro de Andrade (1947), Antônio Barreto (1954), Júlio César Monteiro Martins (1955), Domingos Pellegrini (1949), Caio Fernando Abreu (1948-1996) e Emediato. O livro saiu em 1977, com 20 mil exemplares, esgotados em 15 dias; teve uma segunda edição, de 10 mil exemplares, também rapidamente consumidos, e, na seqüência, uma terceira e última.
O Brasil inteiro – o Brasil que interessava, intelectualmente – falava dos ‘novíssimos’. ‘Histórias de um novo tempo surge como um livro histórico na literatura brasileira. Não apenas porque enfoca a realidade de um modo abrangente e inusitado, mas principalmente porque é o primeiro grande livro de uma geração que se formou nesta última década da história do país’ , apresenta-se a antologia.
Logo depois, sairia a coletânea Queda de braço , organizada por Glauco Mattoso e Nilto Maciel, que reunia 51 autores ‘marginais’ de todo o Brasil, Emediato incluso. Em junho, o premiadíssimo Não passarás o Jordão seria publicado, com boa repercussão na imprensa – apesar de ser um volume difícil, pelo tom alegórico, e controverso quanto ao tema, a tortura e os desmandos da ditadura. E o ano terminaria de maneira inusitada. Em dezembro, depois de anunciado seu nome como vencedor do Concurso de Literatura Cidade de Belo Horizonte, com A rebelião dos mortos, a Prefeitura voltou atrás e não só se recusou a editar o livro – conforme rezava o regulamento –, como também não pagou o prêmio estipulado. Esse episódio levou o prefeito à época a decretar que, a partir daquele ano, sempre um censor faria parte da comissão julgadora…
Por conta do seu destemido enfrentamento com a censura, Emediato foi agraciado com uma menção especial do prêmio concedido pela Associação Paulista de Críticos de Arte ‘por sua luta para publicar seu livro’.
Não passarás o Jordão
Seu livro de estréia saiu em São Paulo pela Editora Alfa-Ômega, em 1977. A primeira parte, ‘Os dragões do trigésimo primeiro dia’, reúne dez contos passados em uma cidade fictícia chamada Mondoro, cujos campos de trigo, no antigamente, ‘alimentavam homens puros e mansos’, e agora encontram-se sob o signo de Artaroth, o ‘deus da guerra e da maldade’. Utilizando-se de uma linguagem francamente alegórica, o autor, como um profeta bíblico, nos conduz pelos descaminhos de uma sociedade que vai aos poucos afundando no pântano da sua própria iniqüidade. Superado esse estranhamento inicial, quando nos dificulta o uso pouco comum na literatura brasileira de subterfúgios para falar da realidade, pode-se ler esse primeiro conjunto de contos como uma novela e é assim, aliás, que a apresento nessa coletânea – uma sucessão de histórias que têm em comum o espaço, Mondoro, o tempo, o reinado das trevas, e a temática, o império da exceção.
A segunda parte do livro, ‘Não passarás o Jordão’, é uma das mais violentas novelas escritas em língua portuguesa. Conta a história de Claudia B., uma jovem comunista, arrancada de casa, torturada e obrigada a confessar sua militância. Para compor a tragédia desse momento da vida brasileira, Emediato transcreve, num procedimento bastante ‘pós-moderno’, artigos de jornais, pronunciamento políticos, o laudo cadavérico do jornalista Vladimir Herzog, torturado e morto na prisão durante o governo Geisel, misturando documentário e ficção, confundindo ambos, tornando, assim, ainda mais absurda a realidade. ‘Afinal’, pergunta o prefaciador, José Maria Cançado, ‘que diferença existe entre o pesadelo e a vigília, quando se está na situação em que esteve essa personagem do Jordão durante um tempo indeterminado, violentada até a inconsciência, cindida até o estranhamento de si própria?’
Os lábios úmidos de Marilyn Monroe
Este o título do segundo livro, publicado em 1978 pela Editora Ática, reunindo 15 contos, com apresentação de Antônio Callado. Nele, o autor segue três vertentes, duas das quais já insinuadas em Não passarás o Jordão. A primeira, englobando os contos ‘O caminho de Armagedon’, ‘No circo’, ‘Um certo senhor Potroph’, ‘O pastor’ e ‘Os ossos do patriarca’, mantém o compromisso de denunciar a situação política do país através da alegoria, filiando-se, portanto, aos mesmos princípios de ‘Os dragões do trigésimo primeiro dia’. A segunda, tentativa de retratar a realidade quase sem intermediação (‘Longe da Terra’ e ‘A extirpação do câncer’) ou com recursos do realismo mágico (‘O teu sofrido povo desgarrado’, ‘O coronel não verá jamais seus filhos’, ‘Breve discurso sobre o significado do tomate’) filia-se a ‘Não passarás o Jordão’, novela homônima do primeiro livro. Por fim, na terceira vertente aparece aquilo que talvez proporcione o mais jovial Emediato, o tema da trivialidade do cotidiano (‘O vago brilho das estrelas’, ‘A origem dos anéis de Saturno’, ‘A perna’, ‘Estreita Estrada’, ‘Os lábios úmidos de Marilyn Monroe’).
Em Os lábios úmidos de Marilyn Monroe, o autor aprofunda seu gosto por experiências formais, antecipando algumas tendências que iriam estar na moda hoje, um quarto de século depois, como o poema em prosa (‘Os caminhos de Armagedon’) e o miniconto (‘Os ossos do patriarca’ e ‘No circo’), mas, em momento algum, se afasta da necessidade de fustigar o incômodo que lhe causa a realidade. ‘O homem está no mundo para alguma coisa, nos dizem os relatos enfeixados aqui, e não para o simples uso e gozo dos anos que lhe couberem de vida’, afirma Callado, na entusiasmada apresentação .
A rebelião dos mortos
O terceiro e último livro de ficção de Emediato saiu em 1978 pela Codecri, braço editorial do Pasquim. Reunia nove contos, que seguiam o modelo proposto anteriormente: a alegoria (‘Anatomia do pesadelo’), o realismo político com ou sem intermediação do ‘mágico’ (‘A data magna do nosso calendário cívico’, ‘Um estranho à porta’, ‘De como estrangular um general’ e ‘A rebelião dos mortos’) e a ênfase no cotidiano trivial (‘Vegetal’, ‘Also sprach Zarathustra’, ‘Os verdes anos’ e ‘Aventuras e desventuras de Dom Pedro II’ – aqui, nem tão trivial assim…).
‘Como pode apreciar-se, nesta obra a literatura de Emediato não ‘protesta’, nem ‘denuncia’, nem ‘doutrina’ ou ‘conscientiza’; não se coloca ao serviço de camadas sociais; mas, cedendo à ciência política o que lhe pertence – os seus canais de qualificações, suas determinações, os conflitos pelo poder, suas burocratizações, etc – encaminha-se obstinadamente para a sua universalização, verdadeira pátria da arte, para a sua extrema individualização crítica e, por fim, para a conscientização, único e inédito espaço onde deixaria de justificar-se a divisão de funções’ , analisava, no prefácio, o escritor peruano Rubén Elias.
Verdes anos
Numa entrevista ao suplemento da Tribuna da Imprensa, em maio de 1979, Emediato anunciava, peremptoriamente, que havia renunciado ao conto: ‘Estou escrevendo agora um romance, que vai me tomar muito tempo, e livros infantis’. Do romance, não se sabe – chegou a indicar o título, Memórias póstumas de Luís, o taciturno ou Memórias falsas de um canalha. Sugeriu que possuía uma novela pronta, A terra era vaga e vazia, que aparece citada no posfácio da segunda edição de Verdes anos, em 1994, e na orelha de Susana Kakowicz para a terceira edição de suas crônicas, A Grande Ilusão, em 1997. Dos infanto-juvenis, dois vieram a lume: Eu vi mamãe nascer (1977) e O outro lado do paraíso (1981) . E até mesmo uma incursão pelo teatro o autor produziu, Ekhart, o cruel, em 1983 . Mais nada.
Publicado em 1984, Verdes anos teve como motivação o sucesso no cinema da adaptação de alguns contos do autor – a primeira edição incorporava o roteiro do filme. Tomando como base a segunda edição, digamos assim ‘definitiva’, deste livro, ele é composto de sete histórias: ‘O outro lado do paraíso’ (publicado autonomamente como literatura infanto-juvenil desde 1981), ‘Não passarás o Jordão’ (do livro homônimo), ‘Cândida’ (versão modificada de ‘A origem dos anéis de Saturno’, de Os lábios úmidos de Marilyn Monroe), ‘Also Sprach Zarathustra’, ‘Verdes anos’ e ‘A data magna do nosso calendário cívico’ (de A rebelião dos mortos) e o inédito ‘O despertar da primavera’ .
Afirmava o autor, na época do lançamento: ‘O livro não é um amontoado, pura e simplesmente, de histórias políticas sobre a tortura e a repressão (…) é um depoimento sincero e honesto: não é ‘literatura de resistência’, algo ligado política e ideologicamente a uma ou outra tendência; não é literatura populista ou ‘de compromisso’. É, mais do que isso – e pode até ser criticado por este aspecto – um livro que tenta resgatar uma experiência de vida’.
Trevas no paraíso
Acredito que boa parte dos leitores com mais de 40 anos lembramos com entusiasmo dos livros do polêmico Emediato. Maníaco por literatura brasileira de todos os tempos, sempre os enxerguei com qualidades que superavam o mero (mas importante) registro jornalístico que datou a grande maioria dos livros nascidos no dito boom da década de 1970 . Foi com o intuito de recuperar o autor para as novas gerações que propus a publicação deste volume, aceita com reserva inicialmente, com excitação ao final. Organizá-lo demandou reler todos os contos (e descobrir dois que desconhecia e até mesmo resgatar um inédito ) com um olhar já não desinteressado, mas crítico.
Para esta edição, sugeri, portanto, a segmentação das 29 histórias (ou 39, se considerarmos ‘Os dragões do trigésimo primeiro dia’ não como uma novela, mas sim 10 contos) em três seções (ou vertentes): a alegoria, o realismo político – ‘mágico’ ou não – e o cotidiano trivial. O Livro I, ou ‘O vago brilho das estrelas’, começa com a pequena obra-prima ‘Verdes anos’, história da alienação e inconseqüência da juventude classe média brasileira, e termina com ‘Trevas no Paraíso’, uma pungente tomada de consciência política. São contos em que, se já se pressente um clima de pesadelo, ele está além do que vai relatado – talvez aí esteja o que de melhor produziu Emediato.
O Livro II, ou ‘Breve discurso sobre o significado do tomate’, inicia-se com ‘O coronel não verá jamais seus filhos’, garciamarqueziano desde o título, e finda com ‘Não passarás o Jordão’, novela que, pelo clima absurdo que instala, prenuncia a perda total dos parâmetros da realidade do Livro III, ‘Anatomia do pesadelo’, pura alegoria. Amarrando tudo, ofereço um Epílogo, que traz um único conto, ‘O despertar da primavera’, cujo protagonista afirma, a certa altura: ‘Um dia vou escrever uma história sobre nós dois; sobre a nossa vida aqui, nossos amigos, nossa gente; todas as nossas lembranças’ . E, como bônus, ‘O filho’…
Se, depois de tudo, você achar que, engraçado, tudo isso lhe parece muito mais próximo do que imaginava, respire fundo: ainda há trevas no paraíso.
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Escritor, autor de Eles eram muitos cavalos