Sob o sol escaldante de uma manhã de verão de 2019, faço o trajeto a pé de um extremo a outro do centro do bairro onde trabalho há anos. Muita coisa mudou. E hoje há muita luz, calor e o asfalto é cinza-derretido. Posso optar e procurar sombra e climatização nos oásis artificiais, mas continuo e atravesso a ponte-estrada sobre o que um dia foi um rio. Cinza-poluído, com margens tomadas pelo panicum maximum, talvez mais conhecido como capim-colonião e, o sempre presente lixo a céu aberto.
Ouço uma música… o som se define mais e mais a medida que sigo pela calçada. Parece o alto e bom som que ouvimos das igrejas de denominação evangélica, muito comum atualmente… A sim… É “Halllelujah” de Leonard Cohen, com letra adaptada em português, interpretada por mulher de meia idade, estatura baixa, “parda” no sentido do termo adotado pelo instituto brasileiro de geografia estatística presente nas rotinas de departamento pessoal, — com acompanhamento de instrumentos musicais tocados por dois ou três homens.
Fico surpresa e considero uma grande sorte minha, ouvir uma cantora sustentar “Hallelujah” ao vivo, neste dia comum de janeiro, em plena periferia de uma região metropolitana brasileira. Estavam, eles do grupo musical, em frente a um mercado popular, certamente contratados para chamar a atenção dos pedestres para as lojas e suas roupas penduradas e habilmente precificadas. Cor, muita cor nos estampados florais e uma grande variedade de modelos pensados e manufaturados exclusivamente para jovens mulheres…
Avanço e passo em frente a delegacia de polícia. O vidro cinza-escuro impede a visão do interior. O vidro já foi transparente — não é mais ou agora há uma película que sofre efeito do clima?
Costumava ver os esquetes ao passar — os atendentes e as pessoas esperando o atendimento em uma infinidade de poses. Suas faces, nunca alegres.
A música me acompanha — gosto dela, essa melodia sempre me toca, sobretudo o refrão — decido conscientemente fazer dela inspiração para meu percurso — um exercício. O que não posso ver, imagino — quanta miséria humana e micro-tragédias pessoais acontecem agora no interior dessa delegacia-purgatório? Do lado de fora, dois policiais com suas “carabinas” penduradas sobre os ombros, fardas cinza-militar, óculos escuros, estão sentados e digitam concentrados em seus celulares, enquanto passam os pedestres. Parecem estar em pausa, tranquilos — mas os símbolos que representam e a função, tensionam em outra direção.
Sigo tocada pela música e me preparo para atravessar a rua.
A música é substituída pela sirene ruidosa de algum veículo que se aproxima velozmente. A caminho da delegacia, certamente. Olho para trás.
O veículo é retido no engarrafamento, bem em frente e contrastando com o paredão branco do shopping oásis — onde era a praça pública — que fica do outro lado da rua. É assim, que meu olhar tem oportunidade de deter-se nos detalhes, assim como o dos demais pedestres.
Trata-se de uma camionete de grande porte, cinza-chumbo, em mau estado — problemas na lataria e pintura. Carrega atrás, na caçamba, dois ou três policiais altos e fortes, com fardas completas — ombreiras, cotoveleiras, capacetes com as viseiras levantadas, “carabinas” que apontam para o céu — cinza-sobre-cinza. Todos olham de frente, para o exterior, cabeças erguidas.
Meu olhar circula e, surpresa… vejo no centro da caçamba, rodeados pelos policiais, o motivo de todo o aparato e alarde.
Sentados e algemados com as mãos para trás, de cabeças baixas, corpos curvados, franzinos. Cada um com o olhar que não se atreve a se desviar de um ponto fixo sempre abaixo. Figuras desprovidas de qualquer pessoalidade — cabeças raspadas, descalços, sem camisa. A pele negra — três jovens conduzidos prisioneiros vindos de alguma guerra perdida…
Algo está errado nessa cena…
Penso em algumas coisas, não necessariamente na ordem aqui disposta.
Como o estado de calamidade financeira do estado do Rio faz com que veículos oficiais precários continuem em uso e na inusitada função de “camburão”? / A utilização desse tipo de veículo com carroceria aberta para transporte de pessoas não é ilegal e passível de multa, conforme o código de trânsito brasileiro? / Porque temos que ser espectadores da ostentação de armas? / Porque a desproporção no aparato legal-policial? / O que há nesse contraste entre a altivez alva dos guardas e a humilhação dos rapazes negros, sempre os negros?…
A sim… Isso… é isso!
Tudo está acontecendo agora sob o sol, mas esses três jovens parecem surgidos direto de uma cena de Rugendas!
**
Maria Inês Veloso Tavares é arquiteta e moradora de São Gonçalo – RJ.